A ética do estudante de Direito

AutorJosé Renato Nalini
CargoCentro Universitário Anchieta de Jundiaí. Desembargador do TJ-SP. Presidente da Academia Paulista de Letras. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela USP. Docente do Centro Universitário Anchieta de Jundiaí-SP e da FAAP-SP
Páginas1-18

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Introdução

Preocupar-se com a conduta ética não é privativo dos idosos ou dos formados. Assim como o aprendizado técnico é uma gradual evolução sem previsão de termo final, assimilar conceitos éticos e empenhar-se em vivenciá-los deve ser tarefa com a duração da vida.

As crianças precisam receber noções de postura compatível com as necessidades da convivência. Não é fácil treinar para a verdade, para a lealdade, para o companheirismo e a solidariedade, quem nasce numa era competitiva, onde se deve levar vantagem em tudo. Uma sociedade enferma, a conviver tranquilamente com o marginalizado, a se despreocupar com o idoso, a agredir a natureza e o patrimônio alheio, pode ser escola cruel das futuras gerações.

Nem por isso se deve abandonar o projeto de torná-las mais sensíveis e solidárias. De um ideal de formação em que a razão e a informação prevaleceram, deve-se partir para novo paradigma. É hora de desobstruir canais pouco utilizados, como os sentimentos, as sensaçõesPage 2 e a intuição. Se a humanidade não se converter e não vivenciar a solidariedade, pouca esperança haverá de subsistência de um padrão civilizatório preservador da dignidade.

A melhor lição é o exemplo. Temos falhado ao legar à juventude um modelo pobre de convivência. Estamos nos acostumando a uma sociedade egoísta, hedonista, imediatista e consumista. Egoísmo distanciado da visão otimista de SHAFTESBURY e BUTLER, para quem o indivíduo é altruísta por natureza1. Egoísmo na sua versão mais pessimista, a conceber o homem “como um ser egoísta, preocupado primeiro consigo mesmo e logo pelas pessoas mais próximas a ele, disposto a competir com os demais e a prejudicá-los, se isto for necessário à satisfação de seus desejos”2.

Hedonismo exacerbado, pregando o prazer a qualquer custo e a conversão da vida em uma eterna festa. A juventude é passageira e, além de prolongá-la mediante utilização de todos os recursos, reclama-se ao jovem vença um campeonato de resistência para participar de todos os certames: sexuais, esportivos, sociais e lúdicos. Imediatismo, como se o mundo estivesse prestes a se acabar e houvesse pressa em usufruir de todas as suas benesses. Consumismo impregnando a própria concepção de vida: tudo constitui produto na sociedade de massas que descarta valores, descarta a velhice, os sacrifícios e tudo aquilo que não significar um permanente desfrute.

Não se pode esperar de escolares cujas mães quase se agridem fisicamente na disputa de vaga para estacionar seu carro à saída da escola, venham a se portar eticamente quando adultos. Nem se aguarde que os filhos de pais que lesam o fisco, seus empregados ou patrões, que se referem à honestidade como um atributo dos tolos, venham no futuro a constituir modelos morais.

O estudante de Direito optou por uma carreira cujo núcleo é trabalhar com o certo e com o errado. Ele tem responsabilidade mais intensificada, diante dos estudantes destinados a outras carreiras, de conhecer o que é moralmente certo e o que vem a ser eticamente reprovável.

Alguma ética todo jovem possui. Mesmo que seja a ética do deboche, ou a ética do desespero, a ética do resultado ou a ética do deixa disso. Na Faculdade de Direito ele desenvolverá essa formação ética inicial e, depois de cinco anos, queira-se ou não, estará ele entregue a um mercado de trabalho com normativa ética bem definida. Os advogados têmPage 3 Código de Ética, juízes e promotores também. E, até há pouco, nada ouvia o estudante quanto à ciência dos deveres em seu curso.

É ilusão acreditar que o salto qualitativo nas carreiras jurídicas, a depender de um incremento ético de seus integrantes, decorra de um processo de aperfeiçoamento espontâneo da comunidade. O momento de se pensar em ética era ontem, não amanhã. O futuro cobrará do profissional posturas cujo fundamento ele não entenderá perfeitamente e de cuja experiência não dispõe, pois nada se lhe transmitiu ou cobrou.

Ainda é tempo de propiciar uma reflexão crítica sobre a ética. O entusiasmo da mocidade e o convívio com heterogeneidades próprias à atual formação jurídica se encarregarão de fornecer aos mais lúcidos os instrumentos de sua conversão em profissional irrepreensivelmente ético.

1 Deveres para consigo mesmo

Os princípios que regem a conduta humana devem contemplar, em primeiro lugar, os deveres postos em relação à própria pessoa. Embora não se fale em ética para consigo mesmo, que ética é algo a ser cultivado em relação aos outros, ninguém contesta a existência de deveres para com a própria identidade. Assim o dever de subsistir, ínsito ao instinto de sobrevivência, o dever de se manter corporal e espiritualmente hígido, o dever de higiene pessoal e o de se apresentar em condições compatíveis com o local, momento e circunstâncias.

A criatura humana é destinada à perfectibilidade. Todos podem tornar-se cada dia melhores. Esse é um projeto individual que depende apenas de cada consciência. Ao se propor a estudar Direito, o estudante assume um compromisso: o de realmente estudar. Isso parece óbvio e realmente o é. Quem conhece o aluno do bacharelado jurídico sabe que as obviedades precisam ser enfrentadas.

Todos os anos - e agora, todos os semestres - milhares de jovens são chamados ao vestibular e optam pelo Direito. Grande parte deles desconhece o que seja o compromisso jurídico. Estão pensando em fazer um curso que lhes permita a continuidade do trabalho, ou de acesso relativamente fácil, diante da quantidade de vagas oferecida. Seja na escola pública, seja na particular, os esquemas de aprovação permitem que, depois de cinco anos, esse universitário seja um bacharel. A passagem de uma série a outra é sempre facilitada. Poucas as exigências e os obstáculos postos ao estudante.

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Parcela considerável da responsabilidade pelas deficiências do ensino de Direito é de ser tributada aos educadores. Conformam-se com o curso tradicional, grandes turmas, professores sem dedicação exclusiva, ministrando aulas prelecionais quase sempre com exame sequencial da codificação. Não há espaço para a reflexão crítica, nem para a pesquisa. Inviável o acompanhamento individual do aprendizado ou orientação direta sobre os estudos.

Outra parcela, não se negue, decorre dos próprios estudantes. Eles se impregnam do espírito conservador e inerte da academia e resistem às tentativas de transformação. Como resistiram ao exame de avaliação da Universidade, a cujos propósitos não se pode recusar idoneidade.

Terminado o curso, vem a angústia de quem não sabe exatamente o que fazer com o diploma. O concurso constitui via atrativa para ingresso a carreiras ainda prestigiadas. Mas não existe preocupação vocacional. O mesmo candidato está inscrito nas seleções para os quadros da Magistratura, do Ministério Público, das Defensorias, das Procuradorias, das Polícias. Precisa, na verdade, de um emprego. Aqueles que optaram pela advocacia começarão como qualificados office-boys de profissionais experientes. Será longo o caminho para a redenção profissional.

Essa perplexidade pode ser evitada desde o primeiro ano do bacharelado, se o estudante tiver consciência daquilo que se lhe está exigindo. O direito é instrumento de solução de conflitos e de garantia do Estado de Direito de índole democrática. Somente o direito poderá oferecer respostas viáveis para uma sociedade enferma. Sinais de sua moléstia, o convívio entre tecnologia de ponta e ignorância, entre abundância e miséria, dentre tantas outras situações polarizadas.

A juventude é naturalmente inquieta e revoltada contra a injustiça. Fora despertada a descobrir a potencialidade do direito para a solução de todas as grandes indagações do final do milênio e mergulharia num projeto de transformação do mundo com início na conversão pessoal. Conversão à causa da justiça. Justiça que tem início em se autopropiciar um curso de direito da melhor qualidade.

O primeiro dever do estudante de direito é se manter lúcido e consciente. Indagar-se sobre o seu papel no mundo, a missão que lhe foi confiada e que depende, exclusivamente, de sua vontade. Atingido o discernimento, o estudo contínuo, sério e aprofundado será consequência natural. A pessoa lúcida sabe que ela pode, no seu universo, pequeno e insignificante lhe pareça, transformar o mundo.

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Saberá reclamar um padrão de qualidade à sua escola, desde os aspectos físicos à excelência do ensino, aí incluídas as virtudes do corpo docente, direção e funcionalismo. A maior parte dos que se dedicam ao ensino é formada de pessoas bem intencionadas. Estimulada por um alunado entusiasta, reagirá para converter a Faculdade de Direito em usina de criatividade, concretizando a reforma do ensino jurídico hoje delineada3.

O acadêmico brasileiro deve ter sempre na consciência o fato de ser um privilegiado. Ínfima a percentagem dos nacionais que ingressam na Universidade. Como na parábola dos talentos, a quem mais é dado, mais é pedido. O universitário tem um débito para com a comunidade e a forma adequada de começar a saldá-lo é procurar extrair proveito máximo de sua permanência na Faculdade. Estudando e exigindo ensino adequado, pois alguém está pagando para recebê-lo e alguém está sendo pago para ministrá-lo. Empenhando-se na pesquisa, parte indissociável do processo educativo. Participando da extensão, que é forma de abertura da Universidade à comunidade.

Tanto pode ser feito pelo universitário de Direito para melhorar a situação dos seus semelhantes. Basta, para isso, acionar a sua vontade. Assim, os mutirões jurídicos para resolver problemas de documentação das pessoas necessitadas, o atendimento para a resolução de dúvidas jurídicas, as cruzadas da cidadania, para alertar a população quanto a seus direitos...

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