A dupla perspectiva de análise do Direito Urbanístico

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas21-38

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Le droit de l’urbanisme est chargé de définir et d’encadrer les possibilités d’utiliser le sol.

Conseil d’Ètat, L’urbanisme, pour um droit plus efficace, 1992.

1. Planejamento urbanístico e disciplina urbanística da propriedade

A perspectiva – disse o filósofo espanhol – é uma forma de organizar a realidade e deve-se acrescentar que nunca será única. O Direito pode ser compreendido como um sistema de princípios e normas que buscam conformar, com base no valor do justo e do razoável, a realidade existente. Mas tais comandos, do ponto de vista científico, precisam ganhar alguma ordenação para que sejam tratados sistematicamente, o que é da essência do fenômeno jurídico. Portanto, no caso do Direito Urbanístico, que constitui a face jurídica do urbanismo, há que estabelecer pontos de vista ou, se se quiser, critérios de análise das normas e institutos que disciplinam a ordenação dos espaços habitáveis. É evidente que, uma vez “capituladas”, as normas e seus comandos ganharão maiores condições de eficácia porquanto o intérprete saberá onde elas se inserem e se situam, ou seja, onde estão ubicadas. E, desse modo, quais serão suas correlações diretas e indiretas com a realidade e com o próprio sistema.

O presente texto parte da ideia central de que o Direito Urbanístico, ramo do Direito Público de constituição recente – e cujo estudo se iniciou nas faculdades de arquitetura, aduza-se –, tem, basicamente, dois enfoques centrais: o pla-

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nejamento urbanístico, no nível macro, e a disciplina urbanística da propriedade, na escala oposta. Ambos se fazem presente na recente e procedente definição de Ramón Parada: “Direito Urbanístico é o conjunto de normas reguladoras dos processos de ordenação do território e sua transformação física por intermédio da urbanização e da edificação”. Tal definição envolve tanto a ordenação do conjunto do território quanto a vigilância sobre a edificação tomada singularmente, ou como escreve o autor, o “controle do direito do proprietário de transformar o próprio imóvel mediante a construção de edifícios para residência, indústria ou outras finalidades”1.

No primeiro enfoque, coloca-se o tema do plano urbanístico local ou Plano Urbanístico Diretor (PUD), que se pretende geral, valendo para todo espaço com destino urbano dentro do território municipal. Assim, na Espanha ele vai se chamar Plano Geral de Ordenação Municipal mas como o seu foco é o urbanismo mais claramente na França ele se denomina, a partir de 2000, Plano Local de Urbanismo (Plan local d’urbanisme – PLU). No segundo, ao inverso, aparece o lote, conceito fundamental de Direito Urbanístico, e todo o feixe normativo que sobre ele recai, e que reclama observância garantida por sanções. A partir desses dois núcleos elementares – que, por óbvio, se comunicam – é que se organizam as normas jurídico-urbanísticas visando “régir la ville dans sa globalité” (Y. Jegouzo). In nuce, enquanto o planejamento urbanístico vê a cidade “à vol d’oiseau”, a disciplina urbanística a examina com uma lupa. É a distinção tradicional entre a árvore e a floresta. Evidente embora, tal diferenciação, no caso, precisa ser melhor explicitada.

O planejamento territorial trabalha em diversas escalas. Espécie dele, o planejamento urbanístico, de caráter especificamente municipal, opera na grande escala (a escala propriamente cartográfica), preocupando-se com a cives como um todo, a partir dos processos espaciais que nela ocorrem.

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Não se faz plano urbanístico no nível do lote, da parcela, mas em referência a todo o complexo urbano2. Unindo saber e poder, técnica e política, o planejamento, aqui, significa tanto prefigurar a cidade futura quanto estabelecer os instrumentos para que se caminhe em direção a ela. Eleger metas e adequar meios para alcançá-las, pois.

Se o planejamento é um processo, a materialização do planejamento urbanístico ocorre no Plano Urbanístico Dire-tor que é exigido pela Constituição Federal no art. 182/§ 1º, o que dá a dimensão de sua relevância. Documento híbrido composto por normas e cartas, o chamado plano diretor define as diretrizes gerais da política de desenvolvimento urbano, estabelecendo as afetações do solo com destino urbano, ou seja, prevendo e predeterminando a vinculação (ou subordinação) da propriedade privada ao interesse público em todo o território municipal. Como se sabe, o direito de propriedade deixou de há muito de ser o “direito em que a vontade do titular é decisiva em relação à coisa”, como entendia Bernhard Windscheid, jurista alemão do século XIX. Ou “a plena potestas, o império exclusivo e absoluto da nossa vontade sobre a cousa”, como escrevia, em 1877, o Conselheiro Lafayette, citando Savigny.

Os proprietários têm direitos e obrigações em face do lote por força do princípio da função social da propriedade. É dizer: têm eles deveres jurídicos específicos derivados da ordem urbanística e garantidos por sanções. Aquele princípio relativiza, funcionaliza, condiciona o domínio haja vista reunir, numa mesma expressão, noções que abstratamente seriam antitéticas, quais sejam, “domínio” (que indica o âmbito privado) e “socialização” (que afirma o império do público). O choque das duas esferas é que torna densa de sentido a tradicional expressão que se apresenta também

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diante de outras instituições jurídicas como função social da empresa ou do contrato. Desse modo, parece redundante falar-se em função social da cidade (art. 182 da CF) ou da família por serem estes, necessariamente, grupos sociais e grupos sociais primários.

Em seu Manual de disciplina urbanística, Antonio Carceller Fernández observa que a expressão “disciplina urbanística” apareceu na legislação espanhola em 1975 – na lei de reforma da “Ley de Suelo” – para indicar “o conjunto de medidas tendentes a manter e, se for o caso, restaurar a legalidade urbanística”, compreendendo as seguintes matérias: a) intervenção preventiva no uso do solo e na edificação mediante a outorga da licença; b) proteção da legalidade vulnerada; c) sanção das infrações urbanísticas; e d) responsabilidade por danos e prejuízos (p. 19-20). Daí afirmar ele que tal disciplina tem um “amplo alcance” que pode ser resumido na cláusula geral da proteção da legalidade urbanística. Porém, este enfoque há de considerar o lote, fração mínima do território urbano, e as pretensões urbanísticas dele decorrentes. Assim, o alcance da disciplina envolve, por assim dizer, uma microanálise: ela vê a árvore – visão que não pode esconder a solenidade da floresta. O atributo eminentemente operativo do Direito Urbanístico fica explicitado, reforçando seu caráter de “ciência ativa e militante” (termos de
C. Demolombe para qualificar o próprio Direito).

Em suma, se tomarmos a cidade como texto tal como faz Roland Barthes em trabalho seminal3, enquanto a disciplina urbanística faz um “close reading”, ou seja, verifica as estruturas elementares, o planejamento urbanístico realiza aquilo que Franco Moretti, em A literatura vista de longe, cha-

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ma de “distant reading”: “a distância faz com que se vejam menos os detalhes, mas faz com que se observem melhor as relações, os ‘patterns’, as formas”. E veja-se que, no processo de planejamento, a chamada fase do “diagnóstico”, denomina-se hoje, muito significativamente, fase da “leitura técnica da cidade”, ou seja, do paradigma orgânico passou-se para o paradigma propriamente semiótico. Pode-se lembrar, ainda, a distinção entre a grande história e a micro-história, que, fugindo das generalizações dos grandes quadros, experimentou enorme sucesso a partir dos anos 70 do século XX.

O jogo de escalas – que muda tanto o objeto quanto o próprio olhar – não é nada novo nas ciências humanas. De fato, a mudança de escala altera não só a realidade representada como também o grau de informação permitida. Neste sentido, o geógrafo Yves Lacoste observa que a realidade aparece diferente consoante os diferentes níveis de análise. Ou seja, “a operação intelectual que consiste em mudar de escala transforma, e por vezes de modo radical, a problemática que se pode estabelecer e os raciocínios que se podem formar. A mudança de escala corresponde a uma mudança do nível de análise e deveria corresponder a uma mudança do nível de conceptualização” (“A Geografia”4). A respeito, deve-se lembrar o conhecido pensamento de Blaise Pascal: “Uma cidade, um campo, de longe é uma cidade e um campo, mas à medida em que nos aproximamos, são casas, árvores, telhas, folhas, ervas, formigas, patas de formigas, e assim ao infinito. Tudo isso está compreendido na denominação de campo” (n. 115).

Em se tratando da disciplina...

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