O conceito do dumping para a regulamentação multilateral do comércio internacional

AutorMarlon Tomazette
Páginas194-214

Marlon Tomazette. Advogado, procurador do Distrito Federal, professor de direito comercial do Centro Universitário de Brasília – UNICEUB e da Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Mestrando do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, área de concentração Relações Internacionais. E-mail: marlon@opendf.com.br

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1 Introdução

A prática do dumping pode autorizar medidas protecionistas no âmbito do comércio internacional, por isso, é fundamental entender o que vem realmente a ser o dumping. Vale ressaltar que o termo dumping foi e ainda é usado em vários sentidos, na linguagem comercial, designando inclusive práticas que não representam tecnicamente o dumping, sendo fundamental afastar tal confusão terminológica. Coube aos estudos econômicos as primeiras formulações mais científicas de um conceito de dumping, chegandose a idéia geral de uma discriminação de preços entre diferentes mercados nacionais.

Tal conceito econômico, contudo, não se confunde com o conceito jurídico que veio a ser formulado posteriormente em termos legais, pelo Acordo Antidumping (AAD), como a exportação de um produto a preços inferiores ao seu valor normal. Vê-se a partir do conceito legal os contornos fundamentais da prática do dumping para qualquer análise jurídica do instituto. Todavia, tal conceito legal faz menção a diversos outros conceitos que precisam ser entendidos.

A partir desse conceito, é fundamental distinguir a prática de dumping de outras práticas como o preço predatório e o underselling que além de se referirem mais ao comércio interno que ao internacional, possuem contornos bem distintos.Outrossim, é certo que com o passar do tempo, acabaram surgindo novas práticas identificadas como tipos de dumping, assim os chamados dumping cambial, dumping social e o dumping ambiental. Tais “novos tipos” de dumping possuem contornos próprios que são bem diferentes dos contornosPage 195 delineados no Acordo Antidumping, restando assim saber se eles, na realidade configuram ou não a prática do dumping.

2 A construção de um conceito econômico de dumping

O nome dumping, em si, pode ter se originado do islandês arcaico thumpa (atingir alguém), tendo sido utilizado, também, como sinônimo para depósito temporário de munições1. No inglês moderno, o verbo to dump significa despejar, descarregar, desfazer-se de algo ou jogar fora2.

O termo dumping foi e ainda é usado em vários sentidos, designando inclusive práticas que não representam tecnicamente o dumping. Muitos comerciantes estendem o uso de tal expressão para qualquer vendo abaixo do preço usual, ainda que haja uma uniformidade do preço para todos os compradores. Assim, vê-se que inicialmente, usava-se tal expressão para designar diversas condutas, como subvalorização de mercadorias, barganha, sacrifícios, vendas abaixo do preço, discriminação de preços, ou ainda corte de preços no mercado local3, idéias que ainda hoje são usadas, mas não representam a prática do dumping.

Inicialmente na Economia, entendia-se a prática do dumping como qualquer prática desleal de comércio internacional considerada perigosa para a economia do país importador4. Aos poucos se reduziu o âmbito desse conceito, para práticas ligadas ao preço de mercadorias. Daí, o dumping passou a ser entendido freqüentemente como a venda da mesma mercadoria em diferentes mercados, por preços diferentes5. Desse uso inicial, pode-se constar a presença de alguns elementos comuns, em todas as acepções usadas. Nessa concepção inicial, três elementos o caracterizam: a) a relação com uma prática desleal de comércio; b) a manutenção da expressão original em inglês e c) uma conotação sempre pejorativa, como um comportamento negativo ou condenável6.

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Posteriormente tal termo passou a ser usado de forma mais técnica, inicialmente na Economia que, na busca de uma terminologia mais exata, formulou um conceito sem a preocupação de abranger todos os usos correntes da palavra. Assim, pode-se dizer que se trata de uma “discriminação de preços entre dois mercados nacionais, entre o mercado exportador e o mercado importador. Em outras palavras, o preço demandado por um determinado bem, pelo mesmo produtor, difere entre dois mercados, desconsiderando-se os fatores relacionados a transporte, tributos etc.”7.

Viner afirmou que a característica essencial do dumping é a “discriminação de preços entre compradores em diferentes mercados nacionais”8, isto é, há dumping quando ocorre a venda da mesma mercadoria por diferentes preços a diferentes mercados, sem razões associadas com diferenças de custos, ou ainda quando são vendidos pelo mesmo preço, mas há diferenças de custos9. Para ele, as intrincadas relações entre do dumping com os custos de produção, com os proveitos gerados e com os preços dos concorrentes não devem ser abrangidas no conceito. Normalmente, o dumping é praticado em um mercado ocasional ou secundário, mantendo-se o preço mais elevado no mercado principal, no qual o produtor tem condições de fixar o preço10. Todavia, tal situação pode ser invertida em determinadas momentos específicos.

A condição necessária para a configuração do dumping é a possibilidade de divisão do mercado em vários submercados, podendo-se isolar ao menos um deles dos demais11, por motivos sociais, geográficos culturais ou legais12. Além disso, deve haver uma diferença de competitividade entre os dois mercados, para permitir a discriminação de preços, vale dizer, a elasticidade da demanda e a oferta devem ser diferentes13.

No conceito dado, abrange-se a situação mais comum do dumping, quando se realizada uma exportação por um preço inferior ao do mercado doméstico, mas tambémPage 197 outras situações mais raras. Quando não há ou é insignificante o mercado doméstico, há uma discriminação entre mercados exportadores também se configuraria o dumping. Além disso, também se enquadraria no conceito a situação de venda no mercado interno a preço inferior ao do mercado externo14.

Assim, quando um produtor que não possui mercado doméstico, discrimina entre dois mercados de exportação, está realizado dumping no mercado do país, no qual a venda se dá pelo preço mais baixo15. Do mesmo modo, se o mercado interno é insignificante e se faz a

distinção entre dois mercados externos. Além disso, o dumping poderia ser praticado no mercado doméstico, vendendo os produtos neste âmbito a preços inferiores àqueles vendidos no mercado externo, configurando o chamado dumping reverso16.

3 Conceito jurídico de dumping

A acepção econômica do termo não corresponde exatamente a acepção jurídica17, que leva em conta a discriminação de preços entre mercados, mas também considera outros aspectos, em especial o valor normal da mercadoria, totalmente ignorado na formulação econômica do conceito.

A doutrina chega a conceituar a afirmar que o dumping consiste “na colocação de mercadorias em outro país a preço inferior daquele colocado no mercado doméstico, com o fito de desestabilizar a concorrência”18. Todavia, os motivos para tal conduta são os mais variados e, por isso, não é possível incluir a finalidade de tal prática no conceito que, em última análise, se torna um conceito objetivo. Basta que o preço de exportação seja inferior ao preço no mercado doméstico, independentemente da intenção.

A definição jurídica do dumping é dada pelo artigo VI do GATT19 1994. No

Acordo Antidumping da rodada Uruguai20 a prática do dumping é conceituada, nos termos doPage 198 artigo 2.1, como o caso de “produto introduzido no mercado por um preço inferior ao seu valor normal, preço comparável, no curso normal das atividades comerciais, do produto similar quando destinado para consumo do país exportador”. Nesta norma, a conceituação jurídica do dumping é um pouco mais detalhada, mas mantém a idéia geral de venda de um produto a preços inferiores ao seu valor normal, destacando-se que esse valor normal é o valor do produto quando destinado a consumo no país exportador em condições normais de comércio. Neste particular, o acordo traz mais adiante outros elementos que permitam essa comparação.

Na legislação brasileira sobre a matéria, o art. 4º do Decreto nº 1.602/95 afirma que “para os efeitos deste Decreto, considera-se prática de dumping a introdução de um bem no mercado doméstico, inclusive sob a modalidade de drawback21, a preço de exportação inferior ao valor normal”. Como não poderia deixar de ser, a legislação nacional mantém a mesma idéia fundamental sobre a acepção jurídica do dumping, como uma exportação de produtos para o Brasil com preço de exportação, inferior ao seu valor normal. Nesse conceito, destaca-se que qualquer tipo de exportação para o mercado brasileiro, ainda que com a finalidade de futuras exportações pode dar margem a configuração do dumping.

Tanto doutrinariamente quanto nos textos legais, vê-se que a definição econômica de dumping é mais ampla que sua acepção jurídica. Na primeira, basta a existência de discriminação de preços entre mercados distintos, ainda que o produto seja vendido pelo seu valor normal ou acima, vale dizer, o fundamental é uma discriminação injustificada de preços. Por outro lado, na acepção jurídica também é fundamental uma discriminação de preços, mas não qualquer discriminação entre dois mercados, isto é, no conceito jurídico é fundamental que essa discriminação ocorra com a venda de um produto por preços inferiores aos seus valores normais, apurados no mercado doméstico do país exportador, ou em outro similar, na impossibilidade de se comparar o valor naquele mercado.

Em suma, há dumping quando o preço de exportação de um produto é inferior ao seu valor normal22, em tese podendo haver prejuízo, vale dizer, o...

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