Alienação em Duas Mãos: Trabalho Eleitoral, Precarização e Estranhamento Político

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas119-127

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“O que é ‘solucionado’? Todas as questões da vida vivida não ficam para trás, como uma ramagem que nos impedisse a visão? Em desbastá-la, em iluminá-la sequer, dificilmente pensamos. Seguimos adiante, a deixamos atrás de nós, e da distância ela é sem dúvida abarcável, mas indistinta, sombria e, nessa medida, mais enigmaticamente enredada.”

Rua de Mão Única, Walter Benjamin1

1. Introdução

A cada dois anos, vivenciamos no Brasil o desdobrar do processo eleitoral para preenchimento dos cargos do Poder Executivo e Legislativo. Talvez seja esse o mais simbólico dos atos resgatados no curso da chamada redemocratização pós-Ditadura Civil-Militar: a garantia consagrada a todo

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cidadão — na acepção clássica do termo — de manifestar periodicamente sua vontade junto às urnas, elegendo seus representantes políticos.

Em que pese saibamos, hoje mais que nunca, que o processo eleitoral se tornou sinônimo de negócio capitalista, e a par de todas as críticas que podem ser direcionadas ao sistema representativo parlamentar — burguês e republicano em sua essência —, é certo que Constituição de 1988 afirmou uma série de marcos institucionais necessários à superação do arranjo social totalitário, bem como patamares transitórios indispensáveis à luta e organização da classe trabalhadora.

A possibilidade dos trabalhadores e trabalhadoras elegerem seus próprios representantes — inclusive oriundos de sua classe — foi apenas um deles. A consagração das liberdades de associação, manifestação, organização política e sindical, bem como uma série de direitos sociais, ainda que não efetivados em sua completude, apontam conquistas necessárias no norte emancipacionista da classe obreira. Ocorre que, quando analisamos a confluência destas três frentes de direitos formalmente consagrados — civis, políticos e sociais —, notamos por vezes incompatibilidades e contradições, a denotar que a atenção de tais direitos na totalidade encontra-se ainda distante. A ordem burguesa se firma no intuito mais aguerrido de autopreservação, evidenciando fissuras na negativa veemente a toda e qualquer espécie de movimento que busque sua superação.

Dentre estas contradições, uma desponta no seio do processo eleitoral e chama imprescindível debate, em que pese ordinariamente escanteada nos debates públicos: a exploração da força de trabalho pelos comitês eleitorais, candidatos, partidos e coligações. Ainda que possa parecer — ao menos a olhos desatentos — entrave de fácil resolução, questão pacífica e “solucionada”, comporta uma série de particularidades que devem ser abordadas com cautela, e que não se resumem à simples leitura da letra de lei que regulamenta a questão. Impõe, em verdade, o enfrentamento crítico, que inclusive extrapola aspectos meramente jurídicos.

É a partir deste referencial plural que pretendemos abordar criticamente a temática, despindo suas vestes exclusivamente jurídicas e demonstrando a insustentabilidade da atual regulamentação do labor eleitoral.

2. O intento de regulamentação legal: ascenso neoliberal e exceção

Hodiernamente, é hegemônica a posição no sentido de que o trabalho eleitoral é regulamentado única e exclusivamente pelo art. 100 da Lei n. 9.504/1997. O referido artigo, que veda o reconhecimento de vínculo empregatício no período eleitoral, possui a seguinte redação:

Art. 100. A contratação de pessoal para prestação de serviços nas campanhas eleitorais não gera vínculo empregatício com o candidato ou partido contratantes.

Sem por ora entrar nos meandros da incompatibilidade de tal norma com o ordenamento jurídico brasileiro, convém ressaltar que nossa leitura acerca da regulamentação do trabalho eleitoral — que em momento algum se pretende isenta, distanciada ou neutra — não pode deixar de lado o contexto em que a Lei n. 9.504/1997 é promulgada.

Ainda que de forma tardia quando comparado com os demais países latino-americanos2, desde meados da década de 1980 — e de forma mais intensa após a virada da década de

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1990 — o discurso neoliberal se consolida enquanto alternativa social, política e econômica no Brasil. Institucionalmente acompanhada pela eleição de Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso — e tristemente acompanhada pelos governos do Partido dos Trabalhadores —, a hegemonização neoliberal brasileira deixou suas marcas também no Direito do Trabalho. Mesmo que saibamos que “a figura de um Estado onipresente nunca foi pensada, nem era da perspectiva ideológica do empresariado industrial nacional”3 nos períodos que precederam a “redemocratização” pós-Ditadura Civil-Militar, a tônica discursiva antiestatista se acentuou na doutrina, jurisprudência e legislação trabalhistas naquele momento.

É tamanho o impacto da lógica de desmonte da proteção do trabalhador em terras tupiniquins que Paulo Arantes identificou a tendência — amplamente disseminada mundo afora na esperança vã de promoção dos índices de crescimento econômico — como a “brasilianização do mundo”4. São estas alterações — na legislação, jurisprudência e na dinâmica de contratação —, apontando “um agravamento tal da espoliação e desamparo dos indivíduos flexibilizados a ponto de assumirem cada vez mais os traços dos ‘homens precários’ da periferia”, “altamente maleáveis e plásticos na sua informalidade de nascença”5, que fazem do Brasil dos 1990 “um laboratório e tanto do famigerado desenvolvimento desigual e combinado de um capitalismo que parece continuar o mesmo”6.

Grande parte dos ataques — ou aqueles mais incisivos, por certo — direcionados à classe trabalhadora decorreram de alterações advindas do legislativo. Para além da primeira reforma da previdência (EC n. 20/1998), podemos pontuar aqui a denúncia da Convenção n. 158, da OIT (Decreto n. 2.100/1996), a legalização do trabalho temporário e do banco de horas (Lei n. 9.601/1998) e a criação da PLR (Lei n. 10.101/2000) como casos mais sintomáticos, e de maior repercussão social e econômica, da ofensiva das classes dominantes contra aqueles que vivem de seu trabalho. É no bojo deste processo social de precarização dos vínculos laborais e proteção social — e de forma quase imperceptível, em diminuto artigo escondido em mais de centena de outros — que aparece a regularização legal do trabalho eleitoral.

Ainda que verse mormente acerca de aspectos formais atinentes ao curso das eleições, a Lei n.
9.504/1997 revela grave ataque à salvaguarda trabalhista daqueles que se ativam profissionalmente nas campanhas. A medida, amplamente acolhida por parlamentares do legislativo — o que não é de se espantar, haja vista que em sua maioria faziam e fazem uso de tais trabalhadores precarizados em suas campanhas —, teve também respaldo dos tribunais pátrios, que na crista da onda neoliberal adotaram naturalmente a previsão do art. 100 da supracitada lei. A resistência jurisprudencial foi quase imperceptível, como veremos a seguir.

3. A posição dos tribunais enquanto reflexo conservador

Não parece ocioso mencionar que o ascenso neoliberal não se revelou no Brasil apenas no âmbito do processo legiferante. O discurso jurídico dentro de tal bitola — em especial na área trabalhista — teve forte papel na construção das formações acadêmicas e jurisprudenciais em nosso país, e no que tange à regulamentação do trabalho eleitoral nada foi diferente. Ao invés de

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promover um necessário enfrentamento à alteração legal que veio a negar a existência da relação de emprego em relação tipicamente tutelada pelo Direito do Trabalho, nossos tribunais apenas referendaram pacificamente a alteração legal, a legitimar posição que já há tempos vinha sendo firmada pela Especializada Trabalhista7.

O Tribunal Superior do Trabalho, frente às primeiras respostas dadas pelos Tribunais Regionais trabalhistas à aplicação da nova regulamentação — isso já no pleito de 1998 —, firmou entendimento em sentido de que inexiste ilegalidade ou inconstitucionalidade no referido dispositivo legal8. Tal posição vem sendo repisada até o presente momento9, escorando-se na ideia de que tais serviços laborais atendem a necessidade eventual, transitória, apenas no período eleitoral, e que por tal razão não se enquadrariam tais...

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