Drummond e a 'Iniciação literária

AutorGeorge Luiz França
Páginas15-34
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 17, n. 28, p. 15-34, 2017|
doi:10.5007/1984-784X.2017v17n28p15 15
DRUMMOND E A “INICIAÇÃO LITERÁRIA
George Luiz França
CA / UFSC
RESUMO: Drummond, no poema “Iniciação literária” de seu Boitempo II, encampa a imagem da nave-
gação e rememora a leitura como desejo da partida, movimento que transparece em várias evocações
da biblioteca de infância. Da partida, caberia perguntar qual o destino de seu trabalho na “iniciação
literária” hoje. As políticas de ensino de literatura, em especial no Ensino Médio, são pensadas ainda e
sempre a partir de diretrizes historiográficas que preconizam a história da literatura nacional à experi-
ência do texto literário. Pensando Drummond como poeta lido como chave não apenas do Modernismo,
mas também do século XX, poeta-estátua de Copacabana, poeta-nacional, poeta-funcionário público,
a pergunta que cabe é: quem é o Drummond-escola (aliás, nome também de muitos colégios)? Que
Drummond os livros didáticos, herdeiros das antologias, arquivam para o repertório de um estudante
de Ensino Médio? Que leitura é feita dessa antologia de Drummond, dado que, além de selecionar,
os livros hoje escolhem modos de ler, leituras válidas e validadas, em que pulsa a morte, como em
todo arquivo? Este texto aborda a seleção de leituras do poeta realizada por obras selecionadas pelo
Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD, 2017) para uso nos próximos três anos nas
escolas públicas brasileiras, problematizando a cristalização da imagem do “poeta nacional”.
PALAVRAS-CHAVE: Carlos Drummond de Andrade; Ensino de Literatura; Livro didático.
DRUMMOND AND THE “LITERARY NOVITIATE”
ABSTRACT: Drummond, in a poem called “Iniciação literária”, from his book Boitempo II, uses the
image of the ship and remembers his readings as a desire of going away. This movement appears many
times in his works, especially when he recalls his childhood’s library. But our question here is: what is
Drummond’s works destiny in Brazilian schools nowadays? Literature teaching policies, especially for
high school, are based in historiographic guidelines that advocates the history of national literature
instead of reading literature itself. Drummond is one of the most important poets of Brazilian modern
literature, has a statue in Copacabana, was a public agent and is a representative icon of the nation;
but which Drummond do we know in school? Who is Drummond in high school textbooks, and does
he determine the students’ repertoire? In which way his selected works are read, since textbooks also
choose ways to read and validate readings? This essay aims to analyze the approach to Drummond’s
writings in high school textbooks selected by the Programa Nacional do Livro e do Material Didático
(PNLD) for the next three years, discussing the survival of the image of a national poet.
KEYWORDS: Carlos Drummond de Andrade; Literary Education; Brazilian Textbooks.
George Luiz França é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina e professor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Colégio de
Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina.
|boletim de pesquisa nelic, florianópolis, v. 17, n. 28, p. 15-34, 2017|
doi:10.5007/1984-784X.2017v17n28p15 16
DRUMMOND E A “INICIAÇÃO LITERÁRIA”
George França
INICIAÇÃO LITERÁRIA
Leituras! Leituras!
Como quem diz: Navios... Sair pelo mundo
voando na capa vermelha de Júlio Verne.
Mas por que me deram para livro escolar
a Cultura dos campos de Assis Brasil?
O mundo é só fosfatos – lotes de 25 hectares
– soja – fumo – alfafa – batata-doce – mandioca –
pastos de cria – pastos de engorda.
Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto
condenando este Assis a ler sua obra.1
Assim é o poema em que, no Boitempo II – Menino antigo, Drummond faz
uma posta em jogo da Iniciação literária. Em que pese o pêndulo percebido e
lido em sua poesia, entre o menino itabirano e a memorialística que perpassa
em especial sua última poesia – aquilo que Silviano Santiago chamou de viés
proustiano do poeta, ou ainda, da ambiguidade entre a ruptura, o desejo de
sair do lugar, e o apego às tradições do clã familiar2 – o poema põe em jogo a
1 ANDRADE, Carlos Drummond de. Iniciação literária. In: Nova reunião: 23 livros de poesia. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 603.
2 A formulação sobre Drummond feita por Silviano encontra-se no livro que leva o nome do
poeta, datado de 1976, no qual aparecem como linhas de força o mito do “começo” – ligado
ao desejo de começar ele mesmo uma nova sociedade e negar os valores do clã, figurada em
sua admiração por Robinson Crusoé – e o mito da origem – no qual esse mesmo começo dado
em ruptura é negado e se reafirma o peso e o valor da tradição e do passado. Anos depois,
no texto Entre Marx e Proust, publicado no suplemento Folhetim, da Folha de São Paulo, essa
formulação antinômica retornaria, nomeando-se, já nos estertores da ditadura, a figura de
Marx no polo revolucionário, em detrimento de Robinson Crusoé (personagem tão frequen-
te em Drummond), e em Vale quanto pesa (1982) serviria para pensar nossa elite pensante
de maneira mais ampla, e não apenas o caso drummondiano. A propósito deste poema, na
convivência entre o desejo de sair pelo mundo em navios e tornar-se rei e assinar decretos.
(Cf. SANTIAGO, Silviano. Carlos Drummond de Andrade. Petrópolis: Vozes, 1976.) João Luiz
Lafetá, por sua vez, perceberá que “[...] essa ambiguidade ideológica cumpre uma função de
espelho – espelho no qual o intelectual-brasileiro-classe-dominante se vê refletido, busca se
conhecer melhor em seus acertos e desacertos. Para parafrasear Antonio Candido diríamos:
instrumento de autodescoberta e auto-interpretação.” LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noi-
te e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004, p. 235.

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