Doutrinas do Século XIX

AutorJônatas Luiz Moreira de Paula
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre (UEL), Doutor (UFPR) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra). Professor Titular e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAR (Universidade Paranaense)
Páginas195-327

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1. A Revolução Americana e o seu legado
1.1. O movimento revolucionário

A Revolução Americana, como bem sintetiza Jean Touchard, realizou-se sob a pressão dos fatos e não foi precedida por uma longa maturação ideológica como na Revolução Francesa, ou de um processo de elaboração de idéias originais.1Essa situação deve-se a que Bernard Poli bem salienta: a ausência de uma “tradição americana” da colônia, em razão da distância que tinha da Corte Real e pelo fato dos imigrantes ainda conservarem as idéias políticas européias.2Por isso, podem ser agrupados alguns fatos como causadores da Revolução Americana. O primeiro decorre da experiência inglesa em decorrência da Lei da Sucessão, votada em 1701, que considerou o fato de Guilherme de Orange não ter herdeiros e que sua sucessão se daria a Ana Stuart, escocesa, e, posteriormente, à prima desta, Sofia, casada com Ernesto de Hanôver, príncipe alemão. Resultou-se daí a unificação da Inglaterra e da Escócia, com reflexos no parlamento e a introdução da autonomia do Poder Judiciário e vitaliciedade na magistratura. Tem-se também a criação do Conselho de Ministros que, na dinastia de Hanôver, constituiu-se o Primeiro-Ministro, encarregado dos assuntos ingleses perante o Rei, e o Gabinete Ministerial, que representava o governo e concentrava as atividades do Conselho de Ministros. No plano interno, pole-mizavam os whigs, que sustentavam a autoridade real mantida nos limites da lei, e os tories, que pretendiam o absolutismo na Igreja e no Estado. Contudo, a partir da morte da rainha Ana, em 1714, houve um trabalho incessante dos whigs para consolidar a autoridade e influência da Coroa, apoiada sobre o

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poder do Parlamento, e uma revisão doutrinária dos tories, que acabou por reconhecer os direitos legítimos do Parlamento e do Povo. Assim, em 1761, ascendeu ao poder o rei Jorge III, que tentou restaurar o governo pessoal, mas não encontrou ambiente propício nem mesmo entre os tories. Desgastou-se ainda mais com a “crise do chá” com os norte-americanos, resultando na Independência (1776) e Guerra contra os americanos, que resultou na derrota da Inglaterra (1781) e na renúncia ao governo (1783).3O segundo, se deve à insatisfação dos governadores e assembléias das colônias diante das autoridades da Metrópole, gerando cada vez mais focos de oposição.4O terceiro, decorre do monopólio do comércio com as Antilhas exercido pela Metrópole – Inglaterra – e que era reclamado pelos comerciantes da Nova Inglaterra, que ficou agravado pela repartição dos encargos fiscais.5O quarto, em razão do estado de espírito dos colonos que se mantém fiel ao individualismo dos puritanos, que trouxe consigo a tradição da liberdade pessoal e do hábito do self government na comunidade e nas assembléias.6Especificadamente no campo religioso, verifica-se uma forte influência do puritanismo na formação ideológica dos colonos, e que posteriormente veio influenciar a nova nação. Pois, a organização das colônias mostrava uma forte coerência ideológica, fundada nos ensinamentos da Bíblia e que mostrava ser a América a “terra prometida”. Com isso, explica Bernard Poli, criou-se uma ideologia americana que posteriormente veio a se manifestar nas célebres frases “Deus Salve a América” e a “América é a Terra Prometida”. Administrar uma comunidade segundo essas máximas religiosas, implicaria em exprimir esses princípios nas decisões políticas, administrativas e judiciais, o que inspirou os legisladores e a Common Law.7Por outro lado, no período que antecedia a Revolução Americana, diversos modelos ideológicos foram invocados para justificá-la. Entretanto, firmou-se entendimento que os americanos deveriam empreender uma luta constante contra a autoridade corrupta e que a decadência inglesa contrastava com a jovem imagem da “república americana” e de novas instituições a surgirem.8

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1.2. O legado democrático da Revolução Americana

Com a declaração de independência, seguiu-se a Constituição Americana, que influenciou demasiadamente as nações latinas americanas, sobretudo o Brasil. Apoiou-se a Constituição Americana no direito natural, afirmando certos direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a busca da felicidade, além de outras tendências.

Acrescenta Jean Touchard, acerca da Constituição Americana, a admiração do sistema inglês, fidelidade aos princípios do governo misto e da separação dos poderes. John Adams refuta Turgot, que acusava os Americanos da sua “imitação despropositada” das instituições inglesas. Desconfiança em relação à massa, cujos erros deviam ser evitados por uma prudente regulamentação do direito de sufrágio e retificados por um Senado vigilante. A Constituição federal era ainda menos democrática que a dos Estados. Desconfiança inicial em relação ao governo federal, mas consciência das necessidades políticas e principalmente econômicas que conduziam a reforçar o poder central. As dez primeiras emendas à Constituição dos Estados Unidos constituíam uma verdadeira declaração dos direitos do homem na linha de Locke. Esta declaração divergia das declarações européias no sentido em que suas prescrições seriam aplicáveis pelos tribunais. Consignava, portanto, uma garantia efetiva, e não uma simples declaração de intenções.9A Constituição Americana decorreu de um compromisso entre grandes e pequenos Estados, entre defensores de um poder forte e partidário das liberdades locais, entre aqueles que pretendiam a industrialização e os que se apoiavam na agricultura. Deste modo se defrontaram duas concepções da democracia: a democracia autoritária dos “federalistas” e a democracia liberal de Jefferson. Nenhuma destas concepções foi de origem popular, mas as suas bases filosóficas e sociológicas eram diferentes.10Isso porque, logo após a promulgação da Constituição, a doutrina liberal americana dividiu-se em duas correntes. Uma, denominada “Federalista”, tendo à frente nomes como Hamilton, Madison e Jay, que reagia em temor à anarquia e a desunião; bem como incentivava o nacionalismo em bases econômicas, com uma organização econômica para favorecer a indústria, criar a prosperidade e permitir a autarquia, com o mercantilismo e protecionismo. Seguiu essa linha, John Adams, o segundo presidente dos Estados Unidos, que acreditava num governo forte, apoiado numa aristocracia poderosa.11

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Em linha oposta, tem-se a doutrina de Jefferson e a democracia liberal, apoiado em Locke, que pronunciava contra o direito de primogenitura, contra a escravatura e contra qualquer atentado à liberdade religiosa. Reagia contra o poder concentrado, razão pela qual incentivava os poderes locais na luta contra as pretensões abusivas do poder central, extensão do direito de sufrágio e desenvolvimento da instrução pública. Preocupava-se mais com a agricultura e, por isso, apoiava-se mais nas regiões Oeste e Sul.12A disseminação da democracia americana colocou em destaque o abade francês Guillaume-Thomas François Raynal, nascido em 12 de abril de 1713, em Aveyron, e falecendo em 6 de março de 1796. Destaca-se a obra do abade Raynal intitulada A Revolução da América.13Tem-se a informação de que as bibliotecas coloniais brasileiras tinham exemplares das obras de Raynal. Quando isso não ocorria, suas idéias eram discutidas por letrados recém-chegados das universidades européias. Na Conjuração Mineira verificou-se uma grande disseminação da doutrina de Raynal.14Defendia Raynal ao longo de suas obras, uma depreciação de Portugal, uma crítica à interferência da Inglaterra, a abertura dos portos brasileiros ao comércio internacional e a independência nacional, o que certamente ia de encontro com os propósitos liberais brasileiros.15

1.3. Alexis de Tocqueville

Nascido em 1805 na França, oriundo de família nobre, magistrado francês que desembarcou em 1831 em Nova Iorque, a pedido do Rei Luís Felipe, a fim de que realizasse estudo sobre o regime penitenciário americano, Charles-Alexis Clérel de Tocqueville já despertara para os destinos das sociedades européias, que até então passavam por várias revoluções nas últimas quatro décadas. Viu o então jovem Aléxis de Tocqueville nos Estados Unidos uma sociedade política fresca e já resolvera os problemas da liberdade e da...

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