Doutrinas da Alta Idade Média

AutorJônatas Luiz Moreira de Paula
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre (UEL), Doutor (UFPR) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra). Professor Titular e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAR (Universidade Paranaense)
Páginas49-87

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1. Estados Medievais europeus
1.1. Introdução

No Século II d.C. a pax romana chegara ao fim. Em razão do declínio do seu exército, o Império Romano, que passou a ser atacado constantemente por tribos germânicas, também estava mergulhado em crise econômica. Isso resultou em uma forte crise no Século III, culminado na má qualidade e deterioração moral dos soldados romanos, o que significava uma constante falta de lealdade e corrupção moral dos combatentes e de seus comandantes, que acabaram por se envolver em motins e em guerras civis. Ante a ausência de uma linha de defesa impermeável, os bárbaros atravessaram os Rios Reno e Danúbio para saquear e destruir as cidades e aldeias do Império Romano, e os povos da Gália passaram a se insurgir contra a dominação romana. Isso significou na derrocada econômica e na interrupção do comércio, e para responder militarmente às invasões e ao fortalecimento do Império, houve a depreciação da moeda, elevação dos impostos e no confisco de bens, com graves prejuízos à classe média.1Segundo J. M. Roberts, foi uma época terrível para Roma, pois enquanto aconteciam as investidas bárbaras, também se iniciara um novo período de guerra civil, seguida de disputadas sucessões. Vários imperadores do Século III foram mortos pelas suas próprias tropas, sendo que um deles foi morto em batalha pelo seu próprio comandante-em-chefe. Simultaneamente a isso, o povo sofria com impostos esmagadores, recessão econômica e inflação elevada, recusa dos líderes locais em aceitar os cargos de membros da Câmara Municipal e de funcionários, quando estes postos significavam impopularidade e coleta de impostos cada vez mais pesados. Outro sintoma da queda do Império foi a reconstrução de muralhas defensivas em muitas cidades.2

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As causas da crise econômica podem ser focalizadas em três fatores:
a) a diminuição da população em virtude das guerras e das pestes; b) a inca-pacidade de progredir tecnologicamente, tendo em vista que a atividade econômica romana era estritamente agrária, não abrindo espaço para outras; c) a sobrecarga da tributação, sobre uma população diminuída, o que representava maior carga tributária, para fazer frente a maiores despesas governamentais; e d) descentralização da economia, que favoreceu a descentralização política, em razão do crescimento dos latifúndios, que produziam para os mercados locais em detrimento dos grandes centros urbanos e isso significou num êxodo em torno dos latifúndios, com o declínio das cidades, tornando essas grandes áreas novos centros do poder político, como que prenunciando o feudalismo medieval.3Com a fundação da cidade de Constantinopla pelo Imperador Constantino para ser a capital do Império Bizâncio, concebeu-se não só uma técnica para a defesa do Império Romano – cada porção do império (Ocidental e Oriental) se responsabilizaria pela integridade territorial –, como também se lançou a semente da civilização cristã européia que iria florescer na Idade Média.

Mas não houve reviravolta na agonizante situação do Império Romano Ocidental. No Século IV a máquina governamental praticamente desaparecera; nenhuma conquista se realizou; a sociedade deixou de habitar as cidades para se transferir para o campo. Isso resultara numa maior dependência dos mercenários bárbaros para manter a defesa do território, o que custava dinheiro e maiores concessões, culminando já na centúria seguinte, no fato de Roma considerar as tribos bárbaras no ano de 406 como confederados (foederati), a fim de designar bárbaros que não se poderiam enfrentar, mas que poderiam ser persuadidos a ajudá-la. Ainda assim, em 410 e 455, Roma foi saqueada pelos godos e visigodos, respectivamente. O golpe fatal ocorreu em 476 com a deposição do Imperador Rômulo Augusto pelos bárbaros, o que é visto pela história como a data final do Império Romano Ocidental.4

1.2. A formação da civilização ocidental: do cristianismo ao Direito Canônico

Crê-se que a civilização ocidental é composta por quatro elementos: a forma de pensamento pela filosofia aristotélica; o apego aos valores cristãos; a vinculação ao liberalismo político-econômico; e a formatação do sistema jurídico fundado no direito romano. Esses elementos se apresentam como marcos diferenciadores de outras civilizações, como a islâmica, a budista e a hinduísta.

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A composição desses elementos não se deu um único ato, pois é produto da evolução cultural de mil anos, cujo termo inicial coincide na época em que o cristianismo torna-se religião oficial do Império Romano e sucede após a derrocada deste.

Com a queda de Roma e a respectiva fragmentação das cidades que o compunham, transformados em cidades-estados, coube à Igreja Católica estabelecer um elemento comum às essas nações e que foi primordial na constituição da civilização ocidental. Afirma J. M. Roberts, em capítulo de sua obra destinada à construção da Europa, que sem dúvida alguma a mais importante instituição deixada pelo Império Romano foi a Igreja. Pois, por toda a Europa Ocidental, os seus bispos – às vezes membros de importantes famílias ricas e com poderosas conexões para apoiá-los – eram personagens fundamentais nos assuntos locais, assumindo tarefas antes efetuadas pelos funcionários imperiais. A Igreja passou a representar cada vez mais o que antes Roma representara: a civilização. Daí que a linha divisória entre o cristianismo e o paganismo era a mesma que separa a civilização romana do barbarismo.5A difusão do cristianismo se deu anos após a morte de Jesus Cristo, quando o exército romano passou a perseguir com obstinação os evangelistas, que alimentavam a esperança da vinda de um Messias para libertar seu povo do jugo romano. Em 66 d.C. toda a Judéia se levantou em revolta contra Roma, provocando inúmeras mortes de cristãos, o que provocou um êxodo massivo dos “seguidores da mensagem” para várias regiões da Europa. Enumera-se também como causa da disseminação do cristianismo as facilidades de deslocamento permitida pelas estradas romanas, a unidade lingüística, o descrédito dos deuses pagãos, e a influência da filosofia estóica, cujos postulados éticos e morais abordavam a fraternidade e a igualdade, o que coincidiam e afinavam com as pregações dos apóstolos.6É verdade que, no período mais severo de perseguição, os cristãos se confinavam às catacumbas e a uma vida quase segregada. Eram discípulos diretos de Cristo que, mais tarde, com o crescimento da comunidade, também surgiram os discípulos dos discípulos. O chefe local da catacumba – equiparado à figura do sacerdote – se subordinava à orientação de um chefe regional – o bispo. Reunidos os bispos, elegiam o Bispo de Roma, o sucessor de Pedro, que se postava no mais alto grau da hierarquia da Igreja, cuja estrutura começava a se instituir.7

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A medida do tempo o cristianismo ganhava mais adeptos e a perseguição não se tornava tão implacável como antes; conseqüentemente permitiu-se que certas celebrações cristãs pudessem ser feitas na superfície, sob o conhecimento público. Isso pode ser constatado a partir do ano 300, com a realização de concílios e da promulgação das epístolas pelo Papa, que tinham por função a elaboração de regras entre os cristãos e a apreciação de certas lides. É o gérmen do direito canônico e do processo canônico.8Mas foi a partir do Império de Constantino e sua gradual conversão ao cristianismo que permitiu a liberdade de culto no Império e depois no ano de 380, no Império de Teodósio I, o cristianismo tornou-se a religião oficial de Roma.9Conseqüentemente, pode-se perceber uma maior difusão do cristianismo no ordenamento jurídico romano no período do Dominato. Pois explica Javier Paricio que o novo sistema de valores difundido pelo cristianismo e a doutrina da Igreja projetavam sua influência na ordenação da sociedade e inspiravam uma série de disposições legislativas, desde Constantino, que refletiam a troca ideológica e a presença institucionalizada da Igreja no plano político. Isso se dava em razão de uma postura da Igreja em colocar uma nova hierarquia normativa, que subordinava o direito secular ao direito divino e natural, a qual correspondia à Igreja definir e interpretar.10Mesmo após a queda do Império Romano a Igreja Católica conservou o sistema administrativo romano e preservou elementos da civilização grecoromana. Note-se ainda que, servindo de agente unificador e civilizador, ofereceu a uma sociedade pagã e descrente, o sentido da vida e da morte. Isso num mundo agonizante, a Igreja foi a única instituição capaz de reconstruir a vida civilizada.11Para compreensão da importância do direito canônico é preciso levar em conta os seguintes aspectos, suscitados por John Gilissen: a) caráter ecunêmico da Igreja, pois desde os primórdios, o cristianismo coloca-se como a única religião verdadeira para a universalidade dos homens, pois pretende impor sua concepção no mundo inteiro; b) domínio de certos setores do direito privado pelo direito canônico, o que realçava também a importância da jurisdição eclesiástica; c) a escrituração do direito canônico, o que representou, na Alta Idade Média, um importante instrumento de afirmação de suas normas, chegando a

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partir do século XII, uma compilação sistemática dos cânones, como espécie de codificação, que se perpetua até os dias de hoje; e d) a existência de uma ciência canônica, face os...

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