Doutrinas aplicadas no início do Século XXI

AutorJônatas Luiz Moreira de Paula
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre (UEL), Doutor (UFPR) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra). Professor Titular e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAR (Universidade Paranaense)
Páginas441-521

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1. Democracia-Liberal
1.1. Introdução

Com a queda do Muro de Berlim em 09 de novembro de 1989 e a extinção da URSS em formalmente em 09 de novembro de 1991, seguido do subseqüente término dos regimes comunistas dos países da Europa Continental, bem como da revisão do sistema econômico da China na década de 90 do século XX, pôde-se perceber que os sistemas inspirados nas doutrinas marxistas sucumbiram diante do sistema democrata-liberal.

Isso não significa que os sistemas marxistas padeciam da democracia; ao contrário, os sistemas comunistas/socialistas acolhiam a concepção substancial de democracia, isto é, da real transformação social, porém negando a concepção formal de democracia, isto é, de um sistema de liberdades individuais e políticas e de um procedimento de sufrágio livre e universal que deferisse a necessária legitimidade ao acesso e exercício do poder. Situação inversa é a dos sistemas da democracia-liberal, que acolhem a concepção formal da democracia – o sufrágio livre e universal fundada na ampla liberdade individual –, como meio legitimante para aquisição e exercício do poder, mas não apresentam realisticamente uma concepção substancial da democracia, como se pode constatar nos países do Terceiro Mundo. Aliás, como informa Vicente Barreto, o liberalismo, na sua forma originária, estava dissociado da idéia democrática.1Por outro lado, cumpre destacar que três grupos temáticos deste capítulo – democracia-liberal, social democracia e populismo – não são doutrinas políticas que surgiram no século XXI. Muito pelo contrário, são doutrinas que foram demasiadamente utilizadas no século passado, sendo que, no caso do liberalismo, suas origens remontam ao século XVII. Contudo, esses grupos temáticos se apresentam firmes no início do século XXI, sendo que os dois primeiros presentes em nações avançadas e o populismo presente em nações politicamente em desenvolvimento, como o Brasil e a Venezuela.

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1.2. Origens do Liberalismo

Para se estabelecer um marco teórico firme, o liberalismo como doutrina política, remete ao século XVII em decorrência das guerras religiosas e da interferência da Igreja Cristã nos assuntos seculares.2André Jardin, por seu turno, situa entre o decênio de 1680-1690, um movimento em reação ao absolutismo, ao fito de fixar os limites do poder real, garantir as liberdades dos cidadãos e o estabelecimento de um regime representativo, para que houvesse uma limitação à tributação.3Por isso, doutrinas da época que reagiam contra o absolutismo são qualificadas por André Jardin como liberais, com destaque a Thomas Hobbes, Bossuet, John Locke, Jurieu, Fénelon e, com destaque e já no século seguinte, Montesquieu, Voltaire, Dideror, Morelly, d’Holbach, Helvetius, Jean-Jacques Rousseau e Mably.4Harold J. Laski complemente essa idéia por constatar que no período compreendido entre a Reforma Religiosa e a Revolução Francesa, uma nova classe social – a burguesa – afirmou seus direitos a uma plena participação no controle do Estado. Essa participação resultou uma completa mudança em todas as esferas de relacionamentos sociais. Pois, se antigamente o vínculo social se fundava no status de seus membros, passou o contrato social ser o alicerce jurídico de tal vínculo; a uniformidade da crença religiosa foi substituída pela diversidade de credos, de tal sorte a surgir o ceticismo entre eles e assim firmar uma liberdade de credo; o vago império medieval do jus divinum e do jus naturale cedeu ao poder irresistível e concreto da soberania nacional; o controle da política, antes assentada na propriedade da terra, passou a ser compartilhado pelo proprietário de bens móveis; a influência social que antes era privilégio do latifundiário, eclesiástico e guerreiro, foi substituída pelo banqueiro, mercador e industrial; a cidade substituiu o campo; a religião foi subs-tituída pela ciência como fator de modelação dos pensamentos dos homens; a concepção do pecado original como fator de condução humana cedeu à perfectibilidade através da razão; os conceitos de iniciativa e controle social deram lugar aos de iniciativa e controle individual. E partir disso surgiu uma nova doutrina, a do liberalismo.5

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Assim, bem sintetiza Paulo Bonavides, da oposição entre a liberdade do indivíduo e o absolutismo do monarca, nasceu o Estado de Direito, mediante um ciclo de evolução teórica e decantação conceitual, que se completaria com a filosofia de Kant. O Estado seria a armadura de defesa e proteção da liberdade.6Contudo, como doutrina política, o liberalismo surgiu no século XIX, porque pretendia resolver as relações entre Estado e indivíduo: o indivíduo seria protegido contra o Estado e contra as massas.7Tal como ocorreu na Inglaterra, onde o liberalismo serviu de ideologia para a burguesia ascendente. Nesse momento histórico o liberalismo reivindicava a defesa o direito natural de liber-dade, a limitação da autoridade governamental e a liberdade de consciência; enfim, a idéia de que o homem tem a liberdade de escolher sua vida e os seus objetivos, algo que o governo não poderia negar-lhe.8O movimento do feudalismo para o capitalismo foi essencial para a passagem de um mundo o qual o bem-estar individual era considerado o resultado final de uma ação socialmente controlada para um mundo em que o bem-estar é considerado a conseqüência de uma ação individualmente controlada.9Por isso, a essência dos proclamos liberais significa a emancipação do indivíduo, assim abrindo caminho para o individualismo, ao confiscar riquezas que eram usadas para apoiar princípios que constituíam obstáculos ao avanço da oportunidade individual, pois serviram para atenuar os tributos cobrados da população para fazer frente aos custos de manutenção da Igreja ou de uma guerra, por exemplo.10Outro elemento foi a transposição do mercantilismo para o liberalismo, pois, com a prosperidade também se poderia garantir a paz social. Se com o mercantilismo a idéia de controle social na seara econômica foi transferida da Igreja para o Estado, posto que a ação estatal fixou-se na obtenção de riquezas e na criação de condições legais suscetíveis de promover a riqueza econômica, os princípios de liberdade ofereciam as mais amplas perspectivas para o indivíduo, por permitir a menor interferência possível do Estado nas relações econômicas.11Na evolução econômica adveio a nova classe social – a burguesa. O século XVII foi um período de afirmação dos burgueses no cenário político

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caracterizado pela aristocracia, para na centúria seguinte impor seus interesses políticos. A burguesia se firmava como classe média ascendente e isso era uma realidade a ser aceita, inclusive pelos nobres e pelo clero. E isso significou que o Estado deixou de ser perseguidor para ser concorde com a doutrina de que o homem deve confiar em si mesmo, pois a prosperidade seria o fruto de suas energias pessoais.12Também aponta Laski outro fator de afirmação do liberalismo decorreu do declínio do Direito Canônico e a conseqüente evolução do Direito Civil. Isso significou numa retração das leis feudais não mais condizentes com a sua época, para se acolher um Direito Civil Romano que exaltava o Estado como sanção moral e legal incontestável do poder político, que bem se amoldava às divisões de classe da nova sociedade.13Outro fator de difusão do liberalismo foi constatado pelo alemão Max Weber na obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, publicada original-mente entre 1904 e 1905, onde em síntese, afirma que o homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida, superando a concepção de que a aquisição econômica não mais está subordinada ao homem como meio para a satisfação de suas necessidades.14E nesse aspecto, o protestantismo, por bem se aproximar desse espírito, apresenta-se como um estágio anterior ao desenvolvimento do espírito capitalista.15Essa doutrina, diz Antony Giddens, para Max Weber ficava mais evidente que na virada do século, o futuro imediato da Alemanha repousava no aguçamento da consciência política da burguesia. Um importante motivo subjacente na obra era o de identificar as fontes históricas desse tipo de “consciência burguesa”. Embora Giddens afirma as tendências esquerdistas de Max Weber, reconhece que dentre os postulados weberianos, o futuro do Estado alemão repousava na burguesia, uma vez que a aristocracia era uma classe em declínio e o proletariado não projetava nenhum líder.16Essa ascensão doutrinária se justificou por três fatores históricos relevantes: a Revolução Americana; a Revolução Francesa; e a Revolução Industrial. Na Revolução Americana...

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