A doutrina dos 'fiduciary duties' no direito norte-americano e a tutela das sociedades e acionistas minoritários frente aos administradores das sociedades anónimas

AutorCarlos Klein Zanini
Páginas137-149

Page 137

1. A subdivisão dos "duties of management" na doutrina norte-americano e no Direito brasileiro Os "fiduciary duties" como espécie dos "duties of management"

A doutrina dos duties of management engloba - como a própria expressão indica - uma pluralidade de deveres impostos aos administradores.

Tais deveres, que têm como destinatários, primordialmente, os administradores da sociedade, são usualmente subdivididos pelos tratadistas norte-americanos em três deveres específicos: dever de atuar dentro do objeto social (to act intra vires); dever de diligência (duty of due caré)1 e dever de lealdade para com a companhia (fiduciary duties, onde se destaca o duty of loyalty).2 Essa subdivisão, contudo, embora de inegável utilidade didática,3 nem sempre se apresenta, na prática, tão definida, sendo frequentes as ocasiões em que os tribunais referem-se, genericamente, a uma violação dos deveres do administrador (breach of the fiduciary duties), diante da

Page 138

impossibilidade (ou dificuldade) de, no caso concreto, precisar, especificamente, qual destes deveres teria sido violado. É o que fazem notar Frank H. Easterbrook e Daniel R. Fischel: "Ultimately, though, there is no sharp Une between the duty of care and the duty ofloyalty".4

A dificuldade percebida pelo direito norte-americano de identificar, com exati-dão, em face de uma conduta concreta do administrador, qual o dever jurídico por ele descumprido pode, também, ser encontrada no direito brasileiro. Isto porque nosso direito, a exemplo do americano, igualmente subdivide os deveres impostos aos administradores em categorias diversas, capitulando-os em diferentes artigos insertos na Lei de Sociedades por Ações. O problema lá experimentado - consistente na identificação do dever especificamente inaten-dido - reproduz-se, portanto, entre nós, observadas, contudo, as diferenças decorrentes da diversidade dos sistemas jurídicos, que fazem com que a identificação seja, aqui, um problema de subsunção do caso concreto à previsão normativa, e não uma tentativa de assemelhar a situação sub examine a outras versadas em precedentes anteriores.

É, pois, esta necessidade de subsumir a situação fática concreta à hipótese de incidência descrita na norma que reclama uma análise da subdivisão efetuada por nossa Lei de Sociedades por Ações. E, neste ponto, poder-se-á verificar quão semelhante se apresenta o nosso direito em comparação ao norte-americano.

Como já sublinhado acima, a primeira categoria em que se subdividem, no direito americano, os duties of management, diz respeito à obrigatoriedade imposta aos administradores de conduzir os negócios da sociedade dentro do objeto social. Esta vin-culação da gestão social ao objeto, imposta pelo direito norte-americano aos administradores, é apenas uma das facetas que evidencia a acentuada importância do estudo do objeto social, o qual, no entanto, não tem sido devidamente analisado por nossos doutrinadores.5 Não é difícil compreender, no entanto, o porquê desta autêntica vinculação dos administradores ao objeto social. Sendo o objeto social uma previsão das atividades que a companhia deve desenvolver, resta claro que os administradores desta sociedade têm o dever legal de orientar sua atuação à frente da administração de modo a conduzir a companhia para o atingimento das finalidades estatuta-riamente previstas. A obediência ao objeto social exigida dos administradores tutela, em última análise, os interesses dos acio-nistas, cuja inversão de capital pessoal na sociedade deu-se para a consecução das atividades sociais no estatuto descritas, não dispondo o administrador de autonomia suficiente para, sponte sua, eleger os caminhos que serão trilhados pela empresa por ele gerenciada. Neste sentido, tão importante é a delimitação do objeto social que a sua modificação, não obstante possível, mediante deliberação por quorum qualificado, confere ao sócio dissidente o direito de recesso, nos termos dos artigos 136, inciso VI, combinado com o artigo 137 da Lei Federal n. 6.404/76.

Tal princípio, da vinculação da gestão ao objeto social, encontra-se também previsto, como não poderia deixar de ser, em nossa Lei de Sociedades por Ações, em diversos dispositivos. Assim, quando a lei do anonimato, em seu artigo 154 reza que "O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia..." está a estabelecer, claramente, o dever do

Page 139

administrador de agir de acordo com o obje-to. Da mesma forma, o artigo 158, inciso II, quando responsabiliza o administrador, o faz desde que o mesmo tenha procedido "com violação da lei ou do estatuto"; vale dizer, excepciona a regra da não responsabilidade pessoal do administrador no caso de descumprir ele as previsões estatutárias, dentre as quais destaca-se, como já sublinhado, a enunciação do objeto social.6

Da mesma forma como sucedeu com o dever de atuar de acordo com o objeto social, o segundo dos deveres impostos aos administradores - o dever de diligência - também encontra-se previsto, expressamente, na lei societária brasileira. Tem-se, aqui, tanto no direito norte-americano como no brasileiro, a utilização de um padrão de conduta, lá denominado - em termo tomado de empréstimo por nós - de stan-dard, como referência para avaliar, qualitativamente, os atos praticados pelo administrador na gestão da sociedade. Nas palavras de um dos mais autorizados comer-cialistas norte-americanos, Robert Clark, Professor da Faculdade de Direito de Harvard, "statutes and case law say that directors and officers owe their corpora-tions a duty of care: They must exercise that degree of skill, diligence, and care that a reasonably prudent person would exercise in similar circumstances"7

Não é difícil imaginar, no entanto, todos os problemas decorrentes da utilização deste Standard of care pelo direito norte-americano. Sua definição exata, necessária para saber em que circunstâncias concretas um administrador efetivamente desatende a este dever de diligência, vem sendo objeto de constante enfrentamento pela rica casuística americana, que, não obstante, ainda não parece haver identificado o exato alcance deste Standard de conduta reclamado do administrador.8

No Direito brasileiro, por sua vez, tais dificuldades se repetem, sendo ainda agravadas em função da escassa elaboração doutrinária e, principalmente, jurispruden-cial, sobre tais conceitos empregados na legislação. Desnecessário referir, neste sentido, que sabe-se muito pouco sobre a extensão e alcance do Standard empregado por nossa lei de sociedades por ações ao regrar o dever de diligência, quando impõe ao administrador "no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios".9

Da adoção deste Standard, necessariamente genérico, pela lei, decorre que a ocorrência de uma infração ao dever de diligência somente poderá ser aferida mediante o exame do caso concreto, quando cumprirá ao intérprete determinar se a ação - ou omissão - do administrador configura ou não um desatendimento ao padrão de conduta esperado do homem ativo e probo na administração dos seus próprios negócios. A aplicação da lei reclama, portanto, in casu, em primeiro lugar, a valoração jurídica do Standard inserto na norma, i.e., do padrão de conduta esperado do "homem ativo e probo na administração de seus próprios negócios", sem o que não se poderá sequer cogitar da ocorrência ou não de uma infração ao dever de diligência.10

Page 140

Não é propósito deste estudo, no entanto, examinar, exaustivamente, o Standard eleito pelo legislador,11 mas, isto sim, apenas demonstrar de que sorte o dever de diligência se insere como subespécie dentro do genérico dever imposto aos administradores, e, neste sentido, sublinhar como as semelhanças apuradas entre o tratamento dispensado por nosso direito e o norte-ame-ricano em tal matéria tornam o estudo deste (onde a casuística se afigura infinitamente mais rica) extremamente valioso para o operador brasileiro.

Finalmente, resta tecer algumas considerações sobre o último dos três deveres em que se fracionam os duties ofmanage-ment atribuídos aos administradores (e, em certa medida, também aos acionistas): os fiduciary duties, também denominados de duties ofloyalty, o que justifica a tradução - não literal - e o emprego da expressão dever de lealdade.

Seguramente, é nesta última variante dos duties of management que encontramos, no direito norte-americano, a mais rica elaboração doutrinária e jurisprudencial, chegando alguns autores a dedicar capítulos inteiros de suas obras sobre corporate law à análise da matéria.12

Nosso direito, também aqui, enuncia o dever de lealdade dos administradores, impondo-lhes, ainda, a proibição de atuar em conflito de interesses com a companhia.

Assim, a riqueza do desenvolvimento do tema dos fiduciary duties no direito norte-americano, aliado à parca elaboração entre nós experimentada, justifica sua escolha para merecer exame...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT