Dos negócios jurídicos

AutorBassil Dower, Nelson Godoy
Ocupação do AutorProfessor Universitário e Advogado em São Paulo
Páginas275-294

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19. 1 Distinção entre ato jurídico e negócio jurídico

Ato jurídico é o ato voluntário de efeitos legais não de intuito negocial. Não predomina a autonomia da vontade humana. Esta se dá através da lei. Exemplos típicos de atos jurídicos são o casamento e o reconhecimento de filho. "O homem que, casualmente encontra um tesouro - escreve Sílvio Rodrigues - não tinha por fim imediato adquirir-lhe a metade. Não obstante, a adquire. Seu ato não é um negócio jurídico, porque falta, ao seu comportamento, o intuito negocial, isto é, a idéia de imediatez do efeito

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buscado".192E continua: "O vendedor aliena seu bem porque deseja o preço, e o ato a que recorre é adequado para conduzi-lo a obter seu desideratum. Não há necessidade de meio-termo nem de subterfúgio. Como o escopo almejado é lícito, a lei permite que ele seja imediatamente alcançado, através do negócio jurídico".193

Diante do que já se expôs, concluem os Juízes Pablo S. Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho: "O ato jurídico em sentido estrito, constitui simples manifestação de vontade, sem conteúdo negocial, que determina a produção de efeitos legalmente previstos".194E continuam: "Neste tipo de ato, não existe propriamente uma declaração de vontade manifestada com o propósito de atingir, dentro do campo da autonomia privada, os efeitos jurídicos pretendidos pelo agente (como ao negócio jurídico), mas sim um simples comportamento humano deflagrador de efeitos previamente estabelecidos por lei". E exemplifica: "É o que ocorre no ato de fixação do domicílio. Quando uma pessoa estabelece residência em determinado local, com ânimo de ficar, transformando-o em centro de suas ocupações habituais, fixa, ali, o seu domicílio civil, a despeito de não haver emitido declaração de vontade nesse sentido".195

No negócio jurídico predomina a autonomia da vontade, aquela que produz efeitos jurídicos imediatos. É a expressão da vontade e do interesse individual. A vontade não decorre da lei. O contrato é a principal manifestação do negócio jurídico.196

Tratando dos negócios jurídicos, José Carlos Moreira Alves, autor do projeto da Parte Geral do Código Civil, exemplifica: "Num contrato de compra e venda, vendedor e comprador, ao celebrá-lo, formam o seu conteúdo determinando a coisa a ser vendida e o preço a ser pago, e estabelecendo, muitas vezes, cláusulas que afastam princípios, dispositivos da lei, ou que encerram condição ou termo. A vontade das partes tem papel preponderante na produção dos efeitos jurídicos desse contrato, cujo conteúdo foi fixado por ela. O mesmo não ocorre quando alguém, numa pescaria, fisga um peixe, dele se tornando proprietário graças ao instituto da ocupação. O ato material dessa captura não demanda a vontade qualificada que se exige para a formação de um contrato".197

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Finalizando, a distinção entre ato jurídico e negócio jurídico, é que, neste último, há o propósito da vontade de obter um efeito jurídico imediato, ou seja, a vontade do agente é dirigida a determinado fim lícito, ao passo que, no ato jurídico, o seu autor adquire o direito independente da vontade.

19. 2 Requisitos de validade do negócio jurídico

"O contrato de locação cujo objeto é a locação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios é nulo de pleno direito, porque viola frontalmente o art. 231198, § 6.º, da CF/88. Ausência, ademais, de um dos elementos essenciais do ato jurídico, qual seja o objeto lícito" (in RT 744/407).

A ementa do acórdão destacado retrata uma hipótese da falta de um dos requisitos de validade do negócio jurídico. De fato, para que o negócio jurídico tenha plena eficácia, validade, produzindo todo os seus efeitos de direito, exige a lei que ele seja praticado por pessoa capaz, que o objeto seja lícito, possível, determinado ou determinável e que a forma da emissão de vontade seja prescrita199ou não defesa200em lei. Nesse sentido, o artigo 104 do Código Civil é expresso, in verbis:

"A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei".

Os mestres Pablo S. Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho acrescentam como elemento constitutivo do negócio jurídico, a manifestação de vontade.

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19.2. 1 Agente capaz ou agente emissor da vontade

O negócio jurídico representa uma prerrogativa que o ordenamento confere à pessoa, através da manifestação de sua vontade, para criar relações capazes de gerar efeitos na órbita do direito. Quem pratica um ato é pessoa natural ou jurídica. Em se tratando de pessoa física, ela deve ter plena capacidade para que a prática do negócio jurídico seja válido.

19.2.1.1 Absolutamente incapaz

"Em se tratando de menores impúberes, são absolutamente incapazes para a outorga de procuração, tanto por instrumento particular, como por instrumento público, eis que inibidos de emitir consentimento como requisito integrativo à validade do respectivo negócio jurídico. Logo, não se pode exigir que os mesmos outorguem procuração para advogado. A postulação é feita por quem os representa legalmente, no caso a mãe, que outorgou mandato válido para advogado procurar em juízo" (in RT 709/168).

Portanto, as pessoas absolutamente incapazes não podem praticar pessoalmente nenhum negócio jurídico válido. Serão representados por seus pais, se menores sob poder familiar; por tutores, se menores sob tutela; ou por curadores, se maiores sob curatela. Os absolutamente incapazes só podem praticar os atos da vida civil mediante o instituto da representação, ou seja, supre-se a incapacidade pela representação.

O ato praticado pessoalmente pelo absolutamente incapaz é nulo (CC, art. 166, I), e não produzirá efeito algum. O juiz, ao tomar conhecimento, deve declarar o ato nulo, independentemente de qualquer finalidade201.

19.2.1.2 Relativamente incapaz

"Os menores entre 16 e 18 anos praticam diretamente os atos jurídicos em que são partes. Todavia, porque relativamente incapazes,

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o consentimento é completado com a assinatura de representante legal, sob pena de anulabilidade dos atos. Esta não se caracteriza quando o relativamente incapaz espontaneamente se declara maior no ato de se obrigar (CC-16, art. 155): "malitia suplit aetatem".202Logo, é válido o ato (leia-se negócio jurídico) impugnado" (in RT 661/145).

De fato, as pessoas relativamente incapazes devem participar pessoalmente do ato, desde que assistidas pelos seus representantes legais. Se praticarem o ato, sozinhas, este é anulável, ou seja, é válido enquanto não desfeito por decreto judicial (CC, art. 171, I). Somente os interessados podem alegar a anulabilidade; o juiz está impedido de declará-la de ofício. Somente após a sua anulação é que o ato deixa de produzir efeito e, se o interessado deixar passar o prazo legal para requerer a nulidade do ato, este fica válido definitivamente (ratificação tácita).

Supre-se, pois, a incapacidade relativa pelo instituto da assistência.

Em se tratando de pessoa jurídica é necessário verificar, ao ser praticado o ato, se ela está regularmente representada. A ementa do acórdão que segue coroa bem essa exposição: "A manifestação volitiva da pessoa jurídica somente se tem por expressa quando produzida pelos seus "representantes" estatutariamente designados. No caso de ser o ato praticado pela pessoa jurídica representada por apenas um dos seus sócios, quando seus estatutos determinam seja ela representada pelos dois sócios em conjunto, o que ocorre não é deficiência na representação, no sentido técnico-jurídico, que aceita convalidação, mas ausência de consentimento da empresa, por falta de manifestação de vontade, requisito fático para formação do ato. O ato jurídico (leia-se negócio jurídico) para o qual não concorre o pressuposto da manifestação da vontade é de ser qualificado como inexistente, cujo reconhecimento independe de pronunciamento judicial, não havendo que se invocar prescrição, muito menos a do art. 178 do CC-16" (in RT 781/179).

A propósito, digno de menção é o art. 105 do CC, assim disposto: "A incapacidade relativa de uma das partes não pode ser invocada pela outra em benefício próprio, nem aproveita aos co-interessados capazes, salvo se, neste caso, for indivisível o objeto do direito ou da obrigação comum". Observando este artigo, o Prof. Sílvio Rodrigues escreve o seguinte: "Tal restrição à atuação dos incapazes é consignada com o intuito de protegê-los,

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tanto que a lei não defere à outra parte o direito de invocar, em proveito próprio, a incapacidade de seu contratante".203

Além da capacidade geral prevista pelo artigo 166, exige-se a capacidade especial, observa Clóvis Beviláqua. "Assim, o maior casado é plenamente capaz, porém, no Direito Pátrio, não tem capacidade para alienar imóvel senão mediante autorização uxória ou suprimento desta pelo juiz. O indigno de suceder, nenhuma diminuição sofre na sua capacidade civil, mas não tem nada para herdar da pessoa, em relação a qual é considerado indigno, pelo que não tem eficácia jurídica a declaração que acaso tenha feito de aceitar a herança".204

Realmente, a capacidade especial, denominada legitimação, distingue-se da capacidade das partes para a validade do negócio jurídico. Não basta, pois, ser capaz plenamente para que o ato seja perfeito. É imprescindível que haja também legitimação das partes para a validade do negócio jurídico.

19.2. 2 Objeto lícito e possível, determinado ou determinável

Não basta que o agente do ato seja capaz. É preciso, também, que o objeto da...

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