Dos gestos do corpo às coisas da alma

AutorMárcio Túlio Viana - Raquel Portugal Nunes
Páginas49-156
2. dos gesTos do corPo
às coisas da alMa
1. O CORPO, O EU E O OUTRO
Nesse ponto, a Sra. Joana fez um gesto muito seu:
fungou, ruidosamente, torcendo o nariz, fechando
o olho esquerdo e prolongando o lábio inferior — conjunto de sinais
fisionômicos que valia um discurso.
(DINIZ, Júlio. As Pupilas do Senhor Reitor).
Eu não sou eu/ nem sou o outro/ Sou qualquer coisa/ de intermé-
dio/ Pilar da ponte de tédio/ Que vai de mim para o outro.
(CALCANHOTO, Adriana; CARNEIRO, Sá. O outro).
Quando, naquela manhã de junho, Amyr Klink começou a cruzar o mar,
certamente sabia que — além de enfrentar o sol, a chuva, as ondas e as dores do
corpo — teria de remar noite e dia contra a solidão. Na verdade, seria ela — para-
doxalmente — sua companheira...
Muito antes dele, num sol de quase dezembro, Caetano Veloso caminhava
(sozinho) contra o vento; Gene Kelly fazia sucesso dançando (também sozinho) na
chuva; e Gabriel Garcia Marques escrevia (ou descrevia) seus “Cem anos de solidão”.
“Que minha solidão me sirva de companhia” — pediu certa vez Clarice Lispec-
tor. “Adeus, solidão!” — é a música de Chitãozinho e Xororó. “Deixe-me sozinho”
— canta Adriana Calcanhoto, reprisando um velho hit de Renato e Seus Blue Caps.
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No fundo, porém, nenhum de nós — nem mesmo Amir Klink — já viveu sequer
um instante completamente sozinho. Ninguém é só uma pessoa, assim como não
é uma pessoa só.(1) Entre um corpo e outro, não há apenas troca, mas contamina-
ção.(2) “Misto quente/sanduíche de gente” — canta Rita Lee.
Dizendo de outro modo, ninguém é completamente alguém. Cada pessoa
“contém as outras e pelas outras é contida (...)”.(3) Assim, “há confirmação do outro
por mim e de mim pelo outro”.(4)
Quando estamos com alguém, são “duas sincronias que se encontram”.(5) Os
sistemas nervosos “se misturam, como engrenagens de um sistema de transmis-
são”...(6) E assim “vibramos juntos”.(7)
Desse modo,
(...) o nosso corpo nos pertence muito menos do que costumamos ima-
ginar. Ele pertence ao universo simbólico que habitamos, pertence ao
Outro (...) O corpo de um homem está todo impregnado do Outro.(8)
Assim, o nosso corpo não apenas vive — mas convive. Não existe “em si mes-
mo, nem quando está nu”.(9) Liga-se no espaço e no tempo com outros corpos,
que “nos frequentam”.(10)
Sequer as emoções nos pertencem por inteiro: elas transbordam, inundando
o espaço comum.(11) Nossos medos e simpatias, amores ou humores passeiam
pela sala: “o que percebo do outro, o que sinto do outro, constitui também o meu
estado corporal”.(12)
É o que vemos, em dose maior, na greve. Reunidas, as emoções fazem brotar
coragens e rebeldias. Até entre os grevistas e a polícia há misturas e contaminações.
Composto de células, o nosso corpo compõe esse grande organismo que é a
Terra. E interage com todos e com tudo: é carne, sangue, músculos, mas também
é vento, planta, bicho, nuvem, trovão. Nem se pode dizer que ele habita a Terra:
é parte dela, é ela.(13)
Assim, uma noite mais fria, um dia mais quente, um olhar amoroso, a voz de
um estranho, a porta que range, o galo que canta — tudo isso e mil outros fatores
nos constroem a cada instante(14), ajudando a moldar o nosso eu e afetando nossas
reações presentes e futuras.
E não é de outro modo nos julgamentos:
As perspectivas de um condenado receber condicional podem mudar
significativamente durante o tempo transcorrido entre os sucessivos in-
tervalos para refeições na agenda de um juiz. Como você possui pouco
conhecimento direto do que acontece em sua mente, nunca vai saber
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que poderia ter feito um julgamento diferente ou chegado a uma decisão
diferente sob circunstâncias muito ligeiramente diferentes.(15)
No tribunal, os corpos absorvem a atmosfera, carregada de emoções, e a
devolvem, reciclada, num vai e vem sem fim. Desse modo, se o clima é mais tenso
ou mais ameno, esses ares duros ou suaves se espalham, influindo nas relações e
provocando reações, visíveis ou não.
Contador de histórias, o corpo começa por contar a dele — que é também
a nossa. Diz quem somos, mas também diz que somos, atestando a nossa exis-
tência e afirmando o nosso eu. É tão forte a presença do corpo que algumas
culturas indígenas só acreditam no que passa por ele; no que os seus sentidos
percebem.(16)
E o corpo é paradoxal: nós o vemos e tocamos, como se ele fosse diferente
de nós; e, no entanto, estamos nele, somos ele. “O homem é o seu corpo, mas
também possui um corpo” — observa Le Breton.(17) Ele é “sujeito e objeto” — com-
pleta Vignaux.(18)
Ao mostrar-se de fora, o corpo pode estar nos mostrando por dentro.(19) Os
seus modos são infinitos: ora feliz ou aflito, ora zangado ou alegre, ora sorrindo
ou em prantos... Corpo e espírito se misturam.(20) “Você pensa com seu corpo, não
apenas com seu cérebro”, ensina Kahneman. Por razões como esta, é mais fácil
obter o sim de um juiz depois do almoço do que antes dele.(21)
Mas o corpo tanto pode se governar como ser governado.(22) E também es-
conde, engana, trapaceia. Um olhar que parece distraído pode estar atento. Até
uma risada pode ser dolorida.(23)
No drible, o jogador emite sinais contraditórios: diz que vai, mas não vai, indica
um sentido e segue outro.(24) Em seus tempos no Galo, Ronaldinho Gaúcho divertia
a torcida dando passes à esquerda enquanto olhava à direita...
E as histórias que o corpo conta são também as dele: passam por sua carne e
o vão construindo. Mais do que revelar o nosso interior, ele o materializa. Torna-se
“a própria ideia ou emoção”.(25)
Inscritos no corpo estão os nossos desejos — atuais ou antigos — assim como as
nossas dores, amores, sonhos e pesadelos. Às vezes, rugas de tristeza e de alegria.
(26) Outras vezes, um rosto sem memórias, cortadas pelo bisturi.(27) No funeral, uma
pessoa torce as mãos, a outra abaixa a cabeça e uma terceira chora: de cada qual,
uma resposta, um modo de lidar com a dor.(28)
Por volta dos anos 1950, no Japão, nascia uma dança triste, de gestos contidos,
lembrando Hiroshima — era o butô. Enquanto isso, os norte-americanos, vitoriosos,
criavam a dança moderna, metáfora de novas conquistas e aventuras.(29) Em cada
passo, em cada corpo, uma história diferente.
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