A Ação de Revisão dos Contratos de Crédito Imobiliário à Luz do Art. 50 da Lei nº 10.931/04

AutorJurandyr Souza Junior
CargoAssessor de desembargador no Tribunal de Justiça do ParanáEspecialista em Direito Processual Civil
Páginas5-15

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1. A função social do contrato de financiamento habitacional e as distorções do sistema de crédito imobiliário

Não é circunstância recente a proliferação, perante os Tribunais, de demandas visando à revisão de contratos de financiamento imobiliário, em especial daqueles firmados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação. Isto se deve a inúmeras distorções em um sistema que, embora concebido para ser simples, resultou agravado com o decorrer do tempo, sobretudo por uma sucessão de crises e planos econômicos frustrados, bem como por algumas condições contratuais abusivas eventualmente praticadas por aqueles incumbidos da sua administração.

Em um primeiro momento, embora a proposta deste trabalho seja a de analisar esses litígios por uma perspectiva eminentemente processual, é necessário traçar, em síntese apertada e superficial, algumas linhas introdutórias sobre o mecanismo de funcionamento do contrato de mútuo habitacional vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação.

Vários foram os objetivos que moveram o legislador de 1964 a instituir o Sistema Financeiro de Habitação. O que se idealizou, naquela oportunidade, era instituir um sistema que beneficiasse não somente o cidadão comum, que pretendesse adquirir a moradia popular. A facilitação das condições de aquisição da casa própria também tinha como escopo a ampliação da demanda no mercado imobiliário, incentivando o crescimento da indústria da construção civil, que, por sua vez, geraria mais empregos e distribuição de renda, dando origem, em conseqüência, a um círculo virtuoso, de crescimento econômico e melhoria do bem-estar da população.

O mecanismo concebido para operacionalizar esse sistema era simples: os agentes financeiros, instituições pertencentes ao sistema financeiro nacional, teriam à sua disposição recursos oriundos das cadernetas de poupança, mais baratos que aqueles captados no mercado financeiro, para disponibilizar a título de empréstimo para os cidadãos que pretendessem adquirir a moradia popular, segundo as diretrizes do Sistema Financeiro de Habitação.

Enquadrado dentro dos requisitos necessários à fruição do benefício legal, poderia o mutuário pleitear a concessão do empréstimo mediante essa linha de crédito privilegiada, que consistia em um financiamento de longo prazo garantido por hipoteca sobre o imóvel adquirido. O principal diferencial dos contratos de mútuo imobiliário atrelados ao SFH, entretanto, residia na forma estipulada para o reajustamento das prestações do financiamento; a lei concedeu ao mutuário a segurança de que a atualização do valor das prestações mensais ficaria sempre atrelada à sua própria variação salarial. Assim, desde a contratação do financiamento, o devedor poderia estar seguro de que as parcelas a serem pagas mensalmente sempre estariam dentro dos limites de sua capacidade econômica. Em princípio, este fato não prejudicaria a comutatividade do contrato, porque o reajustamento do saldo devedor permaneceria sendo realizado por meio dos índices aplicáveis às cadernetas de poupança. Ao final, caso a variação salarial do mutuário fosse inferior à flutuação monetária no período do contrato, o governo garantia a quitação do saldo devedor residual, por meio do Fundo de Compensação de Valores Salariais -FCVS, para o qual contribuíam todos os mutuários. Em um segundo momento, porém, já como decorrência do agravamento da conjuntura econômica nacional, passou a ser insustentável para o governo federal a manutenção do FCVS, posto que a existência da dívida residual ao final do contrato passou a ser a regra. Assim, a responsabilidade inicialmente atribuída ao governo foi paulatinamente transferida para os próprios mutuários, mediante a exclusão da cláusula FCVS dos novos contratos firmados no âmbito do SFH. A partir desse momento, acaso não fossem capazes de quitar imediatamente o saldo devedor residual, aos devedores passou a ser facultado optar pelo seu refinanciamento, também por longo prazo.

Embora o sistema subsidiado parecesse em princípio auto-sustentável, a comutatividade dos contratos não resistiu à sucessão de turbulências econômicas decorrentes de crises econômicas internacionais e de pacotes governamentais desastrados. A partir dessas intempéries no cenário econômico, passou a ser freqüente que as Page 6 prestações pagas mensalmente deixassem de ser aptas sequer para amortizar os financiamentos; assim, o principal da dívida jamais se reduzia, e permanecia indefinidamente sofrendo a incidência de juros e variação monetária.

Some-se a essa circunstância perversa a utilização, por alguns agentes financeiros, de práticas contratuais abusivas, a exemplo da capitalização dos juros, que no decorrer do longo prazo previsto para a quitação do financiamento, pode multiplicar em muitas vezes o valor do débito.

Conseqüência lógica de tudo isso é que, muito embora o mutuário possa ter cumprido regularmente com o pagamento das prestações mensais que lhe eram exigíveis, ainda assim, freqüentemente o saldo devedor permanece sem ser amortizado, e o seu valor continua crescendo incessantemente. Em razão dessa disparidade, ao final do prazo do financiamento, e mesmo que pagas todas as prestações, não raro o saldo residual contabiliza quantia muitas vezes superior ao valor do próprio imóvel objeto do contrato. Diante dessa circunstância, no mais das vezes o mutuário se verá obrigado a realizar o refinanciamento deste débito. é de se notar, a propósito, que o simples pagamento das prestações desse novo financiamento não garante ao mutuário a segurança de ver o contrato quitado ao final do novo prazo concedido. De qualquer modo, o que normalmente ocorre é que, mesmo quando do pagamento regular das prestações, ao final do contrato, o saldo devedor residual redundará em uma dívida muito superior ao próprio valor do bem financiado, verdadeiramente impagável.

Assim, resultado inevitável de tudo isso é que, terminado o prazo do financiamento, o mutuário ainda se encontrará na iminência de perder o imóvel adquirido, mediante a execução hipotecária do saldo residual. Não é necessário realizar exercício mental muito elaborado para perceber que este desfecho afronta diametralmente a própria finalidade social concebida para o financiamento imobiliário, que visa precipuamente a facilitação do acesso do cidadão à moradia popular. De outro vértice, saliente-se que nem mesmo o agente financeiro verá integralmente satisfeita a sua contraprestação, posto que, nos termos do art. 7º da Lei nº 5.741/71, a adjudicação do imóvel dado em hipoteca exonera o devedor do pagamento de todo o restante do débito.

Nesse cenário, não obstante inexistam perspectivas de se atingir a finalidade social a que se destinava o contrato, também é de se observar que ambas as partes restam insatisfeitas ao término da relação jurídica: o mutuário, porque mesmo tendo pagado regularmente todas as prestações, se verá, ao final, expropriado de sua moradia própria; e, a instituição financeira, porque jamais obterá o retorno de todos os valores previstos quando da celebração da avença.

Diante dessa conjuntura perversa, não é de se estranhar o porquê da notória multiplicação de ações judiciais visando à revisão de contratos de crédito imobiliário, sobretudo quando se trata daqueles firmados no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação.

2. A necessidade de uma segura disciplina processual para os litígios sobre contratos de crédito imobiliário

Como já mencionado, são milhares as novas ações intentadas todos os dias por mutuários do Sistema Financeiro de Habitação, com o objetivo de se ver declarada a nulidade de condições contratuais consideradas nulas ou abusivas, ou mesmo para que seja simplesmente restaurada a comutatividade contratual.

Pedido muito comum nesse tipo de demanda é aquele em que se requer o deferimento liminar do depósito do valor das prestações, segundo os critérios de cálculo elaborados pelo próprio mutuário. Esse tipo de solicitação tem sido invariavelmente deferido pelos Tribunais, sobretudo ante a probabilidade de ocorrência de práticas ilegais no decorrer da execução do contrato de mútuo habitacional.

Entretanto, também não são raras as ocasiões em que mutuários de má-fé procuram se privilegiar da tutela jurisdicional para reduzir artificialmente os custos da sua parcela mensal, durante toda a morosa tramitação do processo. Este tipo de atitude é de sobremaneira prejudicial para a manutenção do sistema de crédito imobiliário, porquanto o depósito judicial irrisório dificulta o retorno do capital investido pelo agente financeiro. Neste particular, também é de se ver que não é só o banco que resulta onerado pela medida liminar; considerando que são centenas de milhares as ações revisionais que tramitam perante o Poder Judiciário, a imposição de óbices ao retorno do capital investido significa a redução da disponibilidade de dinheiro para novos empréstimos, encarecendo-os e prejudicando os futuros mutuários. Aqui, nota-se que essa "indústria...

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