O Trabalho Doméstico Análogo à Condição de Escravo como Exemplo de Trabalho Forçado Ainda Existente no Brasil

AutorRita de Cássia A. B. Peron - Marco Antônio César Villatore
Páginas107-1

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1. Introdução

Como já comentamos em outra oportunidade1: "a instituição do trabalho doméstico é uma das mais antigas existentes, tendo em vista a sua íntima relação com a organização social e familiar".

O direito de ter um escravo como propriedade há muito já não faz parte de nosso ordenamento jurídico, entretanto, até os dias atuais perdura a situação de trabalhadores e trabalhadoras que são submetidos a condições de escravidão, ou mesmo que trabalham em condições análogas à de escravos.

O tema que trataremos neste estudo é sobre a condição análoga à de escravo a que alguns trabalhadores domésticos estão submetidos no nosso país: adultos e muitas vezes crianças e adolescentes que são retirados de suas famílias por outras mais abastadas financeiramente, que lhes prometem melhores condições de vida, estudos e tratamento igual ao de um membro da família, mas que recebem somente serviços domésticos a serem realizados em troca de comida, de vestimentas e de um lugar para morar.

Acerca do conceito de trabalho forçado, é dado pela Convenção n. 29 da OIT, como o trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob ameaça ou para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.

Já a Diretora da OIT no Brasil, Laís Abramo, apresenta o conceito brasileiro de trabalho análogo à condição de escravo da seguinte forma:

"O conceito brasileiro de ´trabalho análogo ao de escravo´, ainda que essencialmente baseado no conceito de trabalho forçado estabelecido nas convenções da OIT sobre o tema, inclui a noção de condições degradantes de trabalho. O arcabouço legal brasileiro, assim como o das políticas governamentais, busca sancionar os empregadores que sujeitam sua força de trabalho a condições

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degradantes e inaceitáveis, reconhecendo ainda a responsabilidade das autoridades públicas de melhorar essas condições como parte do compromisso brasileiro com a Agenda nacional do Trabalho Decente".2

Diante desse conceito, podemos enquadrar o trabalho dos empregados domésticos no âmbito familiar, sem pagamento em dinheiro, apenas com a troca dos serviços por moradia, comida e vestimentas, como trabalho na condição análoga à de escravo, e podemos assim apresentar as medidas necessárias ao seu combate, inclusive com análise da legislação atual, até a Emenda Constitucional 72, publicada no Diário Oficial da União de 3 de abril de 2013.

2. Evolução do trabalho doméstico3

Roberto Davis4 entende que o trabalho doméstico já foi, em civilizações antigas, considerado nobre, ao afirmar que era executado como tarefa nobilante nas cortes de reis e grão-senhores.

Problemática é a situação vivida na atualidade, entretanto, em que a exploração e o desprestígio são tão grandes que, muitas vezes, o empregado doméstico não quer nem ser registrado em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social com esta denominação, em razão de complexos decorrentes da discriminação sofrida.

Nesses casos, curiosamente, o empregador doméstico, para evitar melindres e suscetibilidades, acaba qualificando a função com outra denominação como, por exemplo, "secretária do lar", "atendente familiar" ou "assistente residencial".

Superada a questão da escravidão e da servidão (incompatíveis com a ideia de relação empregatícia), o trabalhador doméstico propriamente dito, no passado, estava sempre excluído ou à margem da legislação trabalhista, pois vários fatores sociológicos levavam a tal característica, como os descansos mais benéficos para os domésticos; a relação quase familiar; os salários in natura, difíceis de valorar, enfim, a impossibilidade de se comparar o empregado comum com o empregado doméstico, inclusive com o problema da inexistência de fiscalização do Poder Público.

Mozart Victor Russomano5 entende, inclusive, que a garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio, impedindo qualquer forma de fiscalização do Poder Público (a Superintendência Regional do Trabalho e o ministério Público do Trabalho), é o maior obstáculo para uma melhor proteção legal ao contrato de trabalho doméstico. Complementa, afirmando, que de nada adianta existirem Leis protetoras se o Estado não pode fiscalizá-las e, consequentemente, fazer cumpri-las.

Tendência atual é a de considerar, portanto, o empregado doméstico como um empregado especial, elaborando legislação específica para ele ou inserindo-o em Códigos do Trabalho e até na Constituição, como é o caso do Brasil.

Victor m. Alvarez, por exemplo, ressalta que as peculiaridades dessas relações "impõem uma disciplinação jurídica e econômica ad hoc, mas não a sua exclusão do âmbito do Direito do Trabalho",6 posição esta com que concordamos integralmente.

A título de curiosidade histórica, é importante ressaltar que o Código Civil português de 1867, em seus arts. 1.370 a 1.390, foi o primeiro texto legal que nos trouxe, com detalhes, o contrato de trabalho doméstico.

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O Trabalho Doméstico Análogo à Condição de Escravo como Exemplo de Trabalho Forçado Ainda Existente no Brasil

Já o marco inicial do trabalho doméstico no Brasil surgiu com a chegada dos primeiros escravos africanos, capturados para trabalhar nas lavouras e, também, nos grandes casarões dos senhores de engenho.

Por motivos óbvios, não há que se falar, neste momento histórico, de qualquer forma de proteção a esse trabalho, devendo-se sua lembrança apenas a uma questão de coerência histórica.

Com o fortalecimento de movimentos contrários à escravidão, os grandes senhores passaram a trazer meninas e jovens para trabalhar em suas residências nas funções de cozinheiras e criadas, ainda como escravas, mas com um status diferente, superior aos dos escravos negros da lavoura, por partilharem da intimidade da família do senhor de engenho.

Essa situação, contudo, não descartava totalmente a hipótese de participação de empregados nos ofícios domésticos. Conforme pesquisa Orlando Teixeira da Costa, quando "os cientistas alemães Spix e Martins visitaram Belém, em 1820, notaram que na capital paraense esse trabalho era quase sempre feito pelos índios (...) e aproximadamente na mesma época, Jean-Baptiste Debret, que participou da célebre ‘missão Artística de 1816’, contratada por D. João VI, registrava a existência de grande número de caboclos, geralmente índios semi-selvagens, empregados no serviço particular dos ricos proprietários do interior do Brasil: ‘muito antes da nossa chegada ao Rio de Janeiro, já havia grande número de caboclos empregados no serviço particular dos ricos proprietários do interior do Brasil, os quais logo puderam apreciar as qualidades pessoais desses trabalhadores indígenas semi-selvagens; a experiência provava que era possível fazer deles servidores dedicados e capazes, sob uma aparência apática, de se devotarem generosamente aos interesses de seus senhores. Seus filhos, já criados na civilização, tornam-se, com doze ou catorze anos, excelentes criados, inteligentes e vivos, e intrépidos cavaleiros, caçadores e nadadores, qualidades preciosas para acompanhar os amos em viagem’".7

Após a abolição da escravatura, muitos ex-escravos acabaram permanecendo nas terras, em troca de local para dormir e comida para poder sobreviver, porém, agora não mais como escravos e sim como domésticos.

A Lei de 13 de setembro de 1830 (anterior, portanto, à abolição da escravatura) foi a primeira previsão legal aplicada aos locadores de serviços no Brasil, abrangendo apenas os contratos por prazo determinado mas, por ser genérica, há quem entenda que abrangia também o empregado doméstico. Neste período histórico, vale lembrar também a Lei n. 108, de 11 de outubro de 1837, que se referia aos locadores de serviços estrangeiros, não abrangendo diretamente o empregado doméstico.

Podemos lembrar, ainda, do Decreto n. 2.827, de 15 de março de 1879, que se referia ao locador de serviço em agricultura e em empreitada, sendo que o seu artigo 2º estabelecia que as demais locações de serviço eram regulamentadas pelas Ordenações do Reino, que somente deixaram de prevalecer com o advento do Código Civil brasileiro, de 1916.

Ainda anterior ao referido diploma legal, temos o Código de Posturas do município de São Paulo, de 1886, que definiu "criado de servir", em seu artigo 263, como sendo "toda pessoa de condição livre que, mediante salário convencionado, tiver ou quiser ocupação de moço de hotel, hospedaria ou casa de pasto, cozinheiro, copeiro, cocheiro, hortelão, de ama de leite, ama-seca, engomadeira ou costureira e, em geral, a de qualquer serviço doméstico". Estabelecia multas no caso de inadimplemento das cláusulas contratuais, chegando até a prisão simples para a parte que não cumprisse o pagamento da multa.

Em 1º de janeiro de 1916, foi promulgado o primeiro Código Civil brasileiro, com vigor a partir de 1º de janeiro de 1917 até 11 de janeiro de 2003, quando começou a vigorar outro texto legal, com determinação expressa de revogação de todas "as Ordenações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentes às matérias de direito civil reguladas neste Código", conforme constava em seu art. 1.807.

Tratou-se, portanto, de um marco na evolução legislativa brasileira, com a busca duma uniformização de procedimentos e concentração de dispositivos normativos.

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naquele momento (1916), ainda não havia como se falar, no Brasil, de um Direito do Trabalho como ramo autônomo da árvore jurídica, pelo que todas as relações trabalhistas eram regidas por esse importante diploma.

O referido Código de 1916, em seu Livro III ("Do Direito das Obrigações"), Capítulo IV ("Da Locação"), Seção II, tratou da "locação de serviços, esclarecendo, de logo, em seu art. 1.216 (atual art. 594 do Código Civil de 2002), que "toda espécie de serviços ou trabalho lícito, material ou imaterial, pode ser contratado mediante retribuição", sem que fizesse...

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