O dogma da supremacia do interesse público e seu abrandamento pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal através da técnica da ponderação de princípios

AutorFlávio Quinaud Pedron
CargoMestre e doutorando em Direito pela UFMG.
Páginas1-20

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"Em que medida a Constituição de 1988 importa numa mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal? 1Em que medida as bases interpretativas no Supremo Tribunal Page 2 Federal foram modificadas após a promulgação da Constituição de 1988?" Essas são as perguntas principais feitas por Baracho Júnior (2004:509), em seu ensaio sobre a possibilidade de se identificar uma "nova hermenêutica" nos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ora, se é possível identificar alguma forma de inovação, no curso da linha de raciocínio que o Tribunal vinha tomando, é de se pressupor também a existência de algo anterior, algo que foi ou está sendo superado.2 Para tal empreitada, faz-se necessária a observância dos julgados não apenas como casos isolados, mas como "precedentes", ou seja, como fundamentos para as decisões seguintes - prática utilizada pelo STF para possivelmente representar uma forma de sistematizar a sua jurisprudência.3

Mas, diante da história institucional brasileira, esse trabalho pode se ver ameaçado: "Evidentemente que uma corte cujo trabalho é constantemente interrompido por golpes de Estado, tem maior dificuldade em consolidar uma orientação jurisprudencial minimamente coerente" (BARACHO JÚNIOR, 2004:510).

O tema que pode funcionar como guia dessa tarefa, uma vez que sempre esteve presente, sendo tomado como um dogma, é a prevalência do interesse público sobre o interesse privado. Como lembra Ávila (2005:171), para a dogmática jurídica, seu desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos do Direito Administrativo,4 mas com ramificações e influências para outros "ramos" do Direito, como o direito tributário.

Se, por um lado, a discussão sobre a supremacia do interesse público sobre o privado era posta como um axioma5 - por partir das lições do positivismo jurídico, que considerava a separação rígida entre Direito e Política, excluindo a possibilidade de Page 3 um Tribunal apreciar "questões políticas" - por outro, tal afirmação também serviu como "forma de fragilizar a tutela de direitos individuais em face do poder público" (BARACHO JÚNIOR, 2004:513).

Com isso, evitava a tutela de direitos individuais. E essa não era um debate novo no Supremo Tribunal Federal. Já no governo Floriano Peixoto, no início da República, logo após a implantação do Supremo Tribunal Federal, algumas questões que envolviam ofensas a direitos individuais não foram por ele apreciadas, pois, segundo dizia a Corte, eram questões políticas. Em 1893, em estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, o Supremo se recusou a apreciar uma série de lesões a direitos individuais ao argumento de que aquelas questões eram políticas e que, portanto, não poderiam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário (BARACHO JÚNIOR, 2004: 512-513).

Entretanto, havia opositores a essa tese, como lembram Rodrigues (1991:20) e Souza Cruz (2004:277). Segundo a historiadora, o discurso de Rui Barbosa,6 na defesa dos direitos individuais, representa um contraponto necessário ao exercício democrático dos direitos políticos:

As palavras de Rui Barbosa em 1892 indicam essa concepção: "os casos, que, se por um lado toca a interesses políticos, por outro lado, envolvem direitos individuais, não podem ser defesos à intervenção dos tribunais, amparo de liberdade pessoal contra as invasões do executivo. [...] Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça. Quebrada a égide judiciária do direito individual, todos os diretos desaparecem, todas as autoridades se subvertem, a própria legislatura esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste: a onipotência do executivo, que a vós mesmos vos devorará, se nos desarmardes da vossa competência incontestável em todas as questões concernentes à liberdade" (RODRIGUES, 1991:20-21, grifos no original).

Dessa forma, como afirma Souza Júnior (2004:88), foi-se construindo a noção de que a condição para o exame judicial de questões políticas seria a possibilidade de lesão a direitos individuais.

Em um dos [julgados] mais antigos (HC 3061, julgado em 1911), o Supremo afirmou a possibilidade de conhecimento judicial do caso político quando acompanhado de uma questão judiciária. Logo depois, em 1914, aquela corte resguardou do exame judicial os motivos determinantes ou as conseqüências políticas dos atos de intervenção nos Estados. Construiu também o entendimento de que podia o Judiciário conhecer de casos puramente políticos, desde que se alegasse lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR, 2004:88).

Todavia, a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais, acaba se fortalecendo, principalmente a partir de 1960, intensificando-se no período autoritário que se seguiu. Page 4

Vamos ter, especialmente, a partir de 1965, com a edição do Ato Institucional n. 2, decisões do Supremo Tribunal Federal que importam em negar tutela de uma série de direitos individuais, fortalecendo a idéia de prevalência do interesse público sobre o privado. É o que vamos ver em algumas decisões, como por exemplo, no caso João Goulart, em 1967. De uma maneira geral, as questões que envolviam a segurança nacional, se pautavam pela idéia de prevalência do interesse público sobre o privado (BARACHO JÚNIOR, 2004:514).

Essa interpretação permaneceu, contudo, com o advento da Constituição da República de 1988; como afirma Baracho Júnior (2004-514), basta analisar a decisão proferida na ADI n. 47, que tratou da interpretação do art. 100 da Carta Magna, estabelecendo que "à exceção dos créditos de natureza alimentícia, a execução contra a fazenda pública se fará através de precatório".7

De uma maneira geral, para os publicistas, mas principalmente para os administrativistas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se apresenta como um princípio implícito na ordem jurídica brasileira e seria usado para justificar uma série de prerrogativas titularizadas pela Administração Pública. Isso ocorre por se entender que a mesma seria a "tutora" e a "guardiã dos interesses da coletividade" (SARMENTO, 2005:24). Como conseqüência, verifica-se a existência de uma verticalidade na relação entre a Administração Pública e os administrados, de modo que o desequilíbrio seria sempre em favor do Estado.

Mas o que se pode considerar como interesse público? Talvez essa questão devesse ser mais bem problematizada pelos publicistas, que muitas vezes igualam a dimensão do público à coletividade e, outras vezes, ao estatal (governamental).

Para Bandeira de Melo (2003:57) - valendo-se das lições de Alessi8, seria possível distinguir dois tipos de interesse público: interesse público primário e interesse público secundário (SARMENTO, 2005:24; BARROSO, 2005:xiii). Nessa ótica, identifica-se o interesse primário como sendo a razão de ser do Estado ou como os interesses gerais da coletividade; já o segundo tipo representa os interesses particulares que o Estado possui como pessoa jurídica e não mais como expressão de uma vontade coletiva. Logo, alguns administrativistas buscam fazer uma ponte entre o interesse público primário e o bem comum como forma de afirmação de sua superioridade em face do interesse privado.

Binenbojm (2005:137) faz uma crítica precisa à tentativa de alguns juristas de justificar Page 5 a supremacia do interesse público como princípio norteador da ação administrativa. Nesse sentido, a supremacia do interesse público atuaria como garantia de proteção, inclusive do interesse privado, já que impediria o Estado de atuar a favor de interesses privatísticos, desviando-se dos fins coletivos. Todavia, a corrente a que se filia Di Pietro (2004:69-70) nada esclarece sobre a relação público/privado; além do mais, os problemas por ela apontados não são resolvidos nesse plano, mas no plano dos princípios da impessoalidade e da moralidade.

Salles (2003:58) reconhece a dificuldade de se chegar a um conceito de fácil assimilação, haja vista a natureza genérica que o conceito deve assumir para abranger uma pluralidade de interesses dispersos pela sociedade. Dessa forma, vale-se do Teorema de Arrow (Arrow's theorem)9 para assegurar que tomadas de posição que parecem envolver uma discricionariedade, seria melhor, se deixadas a cargo da decisão estatal (política), representativa do interesse público. Todavia, tal posição pode parecer por demais cética e, até mesmo, ingênua - por vezes, autoritária - ao imaginar que o Estado seja capaz de corporificar todos os anseios e desejos de uma sociedade. Além do mais, vale aqui o alerta de Sarmento (2005:27), já que tal tese pode representar uma forma de ressurreição das "razões de Estado", colocando-se como obstáculo intransponível para o exercício de direitos fundamentais.10

A outra proposta que identifica o público ao componente majoritário também se mostra delicada. Tomando como referência aplicada dessa concepção a decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8, de Santa Catarina, fica claro que o interesse público aqui é igualado a uma maioria da sociedade. Ao examinar o questionamento de se a farra do boi - prática de alguns descendentes de açoreanos residentes em Florianópolis - representaria um risco para a segurança dos participantes e uma ação cruel para com os animais, Baracho Júnior afirma que:

O Supremo Tribunal Federal trabalha com dois fundamentos para dizer que o Estado de Santa Catarina deveria atuar, através da Polícia Militar, no sentido de reprimir a farra do boi. O primeiro argumento é que os animais estariam submetidos à crueldade. O art. 225 da Constituição, inciso VII, diz que o Estado não deverá tolerar crueldades contra animais. O segundo fundamento é o mais curioso desta decisão, porque é exatamente a prevalência de uma visão majoritária sobre a de uma coletividade [minoritária]. Há uma idéia de que as tradições de um grupo minoritário não podem prevalecer Page 6...

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