Por quem dobram os sinos? Reflexões sobre neoconstitucionalismo e ciência jurídica

AutorAlfonso de Julios Campuzano - Valéria Ribas do Nascimento
CargoProfessor Titular de Filosofia do Direito na Universidade de Sevilha (Espanha) - Doutora em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Páginas143-166

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Introdução - positivismo legalista, estado de direito e constituição

Depois do desastre totalitarista do século passado, o pensamento jurídico europeu, profundamente afetado por tão abominável disputa e por episódios dramáticos de negação dos direitos humanos, sentiu a necessidade de mexer nas entranhas do velho e injuriado direito natural, para superar o pesadelo de um formalismo jurídico que propiciou a identificação estreita entre validade e justiça, mediante a redução do universo da juridicidade ao direito positivo. Após o apogeu do positivismo legalista, a exaltação cientificista do Direito como um objeto axiologicamente neutro e a proclamação do caráter estritamente descritivo do conhecimento jurídico, fazia-se necessário recuperar a dimensão valorativa do Direito para restabelecer, de alguma maneira, aquela ligação estreita que, nas origens da modernidade, preconizava o jusnaturalismo racionalista, inserindo o direito no horizonte da justiça, da liberdade, da igualdade e da dignidade humana; valores vinculados diretamente com os direitos humanos, cujas primeiras declarações promulgaram-se no ambiente cultural da ilustração.

Esse contexto cultural compõe as bases teóricas do Estado de Direito, através de sucessivas contribuições que consolidariam a limitação do poder do Estado, a consagração do princípio da soberania popular, a regra da maioria e a eleição dos governantes mediante um sistema de democracia representativa, a separação de poderes, a garantia dos direitos civis e políticos, o princípio da legalidade e a segurança jurídica. Ainda, o Estado de Direito como construção teórica foi iluminado pela ciência alemã do direito público, sob a perspectiva do positivismo jurídico que dominava a Europa do século XIX - especialmente depois das contribuições de Von Habitem e Von

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Mohl que foram os pais da fórmula Rechsstaat, seus principais fundamentos teóricos possuem suas raízes no jusnaturalismo racionalista, no contratualismo, na tradição liberal-democrática e nas decisivas contribuições que a Ilustração legou à humanidade. É sabido; no entanto, que o Estado liberal de Direito representou as aspirações políticas da burguesia, que buscava consolidar em nível político o poder que já ostentava em outras esferas da vida, servindo-se para isso: a) em nível político, da ideologia liberal que, sutilmente manipulada pela nova classe social emergente perdeu sua marca emancipatória e revolucionária para vincular-se aos interesses econômicos como o liberalismo arraigado e decadente2; b) no âmbito jurídico, do positivismo legalista, que levou ao abandono dos conteúdos jusnaturalistas de tradição liberal contratualista, o monopólio da produção jurídica por parte do aparato estatal, a consagração do princípio da legalidade, a onipotência da lei e a primazia do poder legislativo, função que, na prática, ficou confiada a burguesia, que tinha a disposição um modelo de representação política baseada no sufrágio censitário e, por último, a identificação entre justiça e validade em função da qual, todo direito válido, era por si mesmo legítimo.

Esta concepção puramente formal da democracia e dos direitos se sustentou nas construções teóricas da ciência jurídica do positivismo legalista através das contribuições dos principias líderes da ciência alemã do Direito Público, cujos mais importantes representantes - juristas da altura de Gerber, Thoma, Laband e Jellinek -elaboraram uma sólida rede conceitual e um arsenal de categorias jurídicas que consagraram uma concepção estritamente descritiva da ciência do Direito: a neutralidade científica do direito frente a seu objeto de conhecimento buscava a purificação total dos juristas, cientistas e outros operadores, na construção do conhecimento jurídico, cuja pureza radicava, precisamente, na exclusão de toda sorte de valoração vinculada ao seu objeto de conhecimento. Uma ciência jurídica descritiva alheia a juízos de valor sobre o direito e sobre seus conteúdos substantivos de justiça, veio assim a brindar definitivamente esse novo paradigma jurídico do Estado de Direito frente à tosca e vã pretensão de contaminar o Direito com exigências axiológicas externas ao próprio sistema jurídico, processo que culminaria com a assimilação dos direitos fundamentais, como categorias estritamente formais através de sua identificação com os direitos públicos subjetivos: um eficaz instrumento conceitual apto para ancorar definitivamente os direitos humanos no marco de relações jurídicas de direito público, regidas estritamente pelo princípio da legalidade.

Em suma, o abandono do jusnaturalismo pela irrupção do paradigma cientificista do direito constituiu um hiato decisivo na configuração dessa nova ordem jurídica. Desprovido de exigências axiológicas materiais, o direito é reduzido ao poder, e a realização das normas jurídicas acaba por se voltar para quem detinha este poder social. O igualitarismo jurídico expressou-se no reconhecimento puramente formal da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, com isso, permaneceu comprometido com a preservação de uma ordem social e econômica que se baseava sobre o

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reconhecimento explícito da desigualdade entre as classes sociais3. E tudo isso, emergia da exaltação de um conhecimento objetivo, ascético e neutro4, de fato, era o que proclamava e resultava ser ideológico, bem como comprometido com a preservação de um determinado statu quo econômico-social.

O trabalho da dogmática jurídica está diretamente associado a exegese legal, conforme os postulados essenciais de uma ontologia jurídica positivista em função da qual somente se considerava direito, o direito promulgado pelo Estado. Os princípios da unicidade, estatalidade e racionalidade conformam assim ao tripé ideológico sobre o qual descansava a ciência do Direito: somente existe um poder centralizado com capacidade para produzir direito que é, justamente, o Estado como ator único da ordem jurídico-política. Por outro lado, esse direito produzido pelo Estado considera-se racional porque foi produzido em virtude dos critérios de validação das normas jurídicas estabelecidos pelo próprio ordenamento. Dessa identificação estreita entre unicidade, estatalidade e racionalidade será fácil concluir pela ligação com um quarto princípio, o da legitimidade, que permite postular, segundo um raciocínio dotado de inequívoca matriz tautológica, que a legitimidade não procede de nenhum fator metajurídico, pois somente é leg ítimo o direito do Estado, por ser o único direito, estatal e racional5.

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A Constituição se coloca, assim, como um marco de referência cuja continuidade e eventual modificação fica, em todo caso, submetida ao arbítrio do legislador. Ademais, a Constituição é concebida como um marco jurídico eminentemente procedimental, orientada ao estabelecimento de regras de organização do poder, cuja virtualidade se envolve, essencialmente, com a criação de uma ordem institucional para a organização do Estado, a distribuição de competências entre os diferentes poderes e ao estabelecimento de normas de produção jurídica, cuja validade vem delimitada por parâmetros formais de competência e procedimento que determinam a adequação constitucional das normas vigentes. A mera produção normativa conforme os critérios formais estabelecidos na Constituição garante a validade ao direito vigente. Estabelece-se, assim, a identificação da validade das leis com sua positividade (FERRAJOLI, 2006, p. 260).

O Estado liberal de Direito se edifica, portanto, sobre um modelo constitucional flexível, facilmente modificável pelo legislador, já que à Constituição não se reconhece uma categoria supralegal, mas sim permanece como norma primeira do ordenamento, submetida à vontade do legislador, cuja atuação é disciplinada somente pelo aspecto formal: é o legislador quem, em última instância decide sobre a modificação da Constituição que, por sua vez, está revestida sob a forma de uma simples lei, desprovida de mecanismos especiais de proteção que dificultem sua reforma. Na concepção oitocentista da Constituição, o legislador fica investido como ator único da produção normativa, rompendo assim o paradigma jurisprudencial do direito pré-moderno que vigorava até então, no qual as normas se moldavam através de um dilatado processo histórico de seleção e acumulação de natureza fundamentalmente jurisprudencial (REBUFFA, 1990, p. 49). Dessa forma, as Constituições do século XIX expressam uma determinada cultura jurídica e política que deriva, diretamente, do legado cultural da Revolução Francesa e dos pressupostos de racionalidade, ordem e sistematicidade que, iluminados pelo jusnaturalismo racionalista, constituíram a base sobre a qual se edificaria o corpo teórico do positivismo legalista.

O Estado de Direito supõe, nesse sentido, uma inovação sem precedentes, ao substituir o governo dos homens pelo governo das leis e estabelecer limites, que, em seu exercício, o poder não pode vulnerar. Frente ao poder arbitrário do Ancien Régime, o constitucionalismo supõe a submissão do governante ao princípio da legalidade, o qual aquele haverá de condicionar sua atuação. A legalidade constitui a expressão da racionalidade humana: o homem, liberado já das ataduras transcendentes da velha ordem natural, chega, agora, a condição de realizador do direito e este fica erigido ao elemento central da nova ordem e expressão da capacidade humana para ordenar racionalmente a convivência.

Sendo assim, esse Estado de Direito que se submete ao princípio da legalidade é, ao mesmo tempo, um Estado precário de Direito, na medida em que se registram carências que põe em destaque a...

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