Doação de órgãos post mortem e políticas públicas no brasil: ponderações constitucionais entre as Leis N. 9.434/97 e 10.211/2001

AutorMarcelo Bidoia dos Santos - Antônio Luis de Oliveira
Páginas137-157
DOAÇÃO DE ORGÃOS POST MORTEM E POLÍTICAS PÚBLICAS NO
BRASIL: PONDERAÇÕES CONSTITUCIONAIS ENTRE AS LEIS N.
POST MORTEM ORGAN DONATION AND PUBLIC POLICIES IN BRAZIL:
CONSTITUTIONAL WEIGHTS BETWEEN LAWS NO. 9.434/97 AND 10.211/2001
MARCELO BIDOIA DOS SANTOS
1
ANTÔNIO LUIS DE OLIVEIRA
2
RESUMO: Trata-se de investigação qualitativa a revisitar a problemática da doação de órgãos post mortem no
Brasil, trazida com a inversão do sistema de consentimento presumido, ocorrida com a Lei n. 10.211/2001, que
alterou o Art. 4º da Lei n. 9.434/97. Essa mudança conferiu à família do falecido a decisão final sobre a doação,
fundada no direito de personalidade – o que, paradoxalmente, pode contrariar a decisão do falecido em ceder
seus restos mortais para fins altruísticos. Em contrapartida, há preocupação ética e legal no consentimento
presumido que assume o corpo humano como res communitatis apesar de coadunar-se com o princípio da
solidariedade a orientar o Estado [Social] na concretização dos direitos à saúde e à vida. Este trabalho parte da
hipótese de que a liberalidade familiar de escolha na doação de órgãos post mortem não poderia suplantar a
autonomia do individuo que registra seu desejo de ser doador. Ademais, acredita-se, essa possibilidade poderia
aumentar, ainda que virtualmente, o potencial de eficiência das políticas públicas de doação post mortem no
Brasil – o que justifica essa investigação. Destarte, adotou-se como método de abordagem o método dialético e
como técnica de pesquisa a documentação indireta legal e bibliográfica, buscando uma normatização (estática e
exegética) que conferisse maior eficiência aos direitos à saúde e à vida, concretizados mediante políticas
públicas de doação post mortem, nos moldes constitucionais de um Estado Democrático de Direito – marco
teórico. Concluiu-se que a liberalidade familiar só deve dar-se subsidiariamente, se ausente a manifestação
registrada do falecido em fazer-se doador.
PALAVRAS CHAVE: Decisão familiar; autodeterminação; Estado Democrático de Direito; solidariedade;
direito de personalidade.
ABSTRACT: This qualitative research aims to review the problem of post-mortem organs donation in Brazil,
brought with the inversion of presumed consent system, occurred with Law no. 10.211/2001, which amended
Article 4 of Law no. 9.434/97. This change gave the deceased's family the final decision on donation, based on
personality’s rights - which, paradoxically, may contradict the decision taken by the deceased to grant his mortal
remains for altruistic purposes. Besides, there is an ethical and legal concern regarding to the presumed consent
of the human body as a res communitatis - despite being in line with the principle of solidarity to guide the
[Social] State in the concretization of the rights to health and to life. This work starts from the hypothesis that the
family liberty of choice in donation of post-mortem organs could not supplant the autonomy of the individual
who registers his desire to be a donor. In addition, it is believed that this possibility could increase, albeit
virtually, the efficiency potential of post mortem donation public policies in Brazil - which justifies this
investigation. Thus, as a method of approach the dialectical method was adopted and as a research technique the
legal and bibliographic indirect documentation, seeking a normatization (static and exegetical) that confer
greater efficiency to the rights to health and life, materialized through public policies of post mortem donation,
within constitutional molds of a Democratic Rule of Law – the theoretical framework. It was concluded that
family liberality should only be given subsidiarily, if absent the deceased's registered manifestation of donation.
KEYWORDS: Family decision; self-determination; Democratic State; solidarity; personality rights.
Advogado. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo
1
(FDRP-USP)
Advogado. Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo
2
(FDRP-USP). LLm em Direitos Humanos.
Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, vol.90, n.01, jan. - jun.. 2018
137
4
Volume 89, número 01, jan-jun. 2017
Why Individual Freedom and the Autonomy of Law
Stand or Fall Together
Bjarne Melkevik1
Åsbjørn Melkevik2
1 Two Kinds of Autonomy – Legal and Individual
There is, in legal philosophy, an ongoing debate about the autonomy of law, that
is, about the extent to which law is distinguishable from some other phenomena. The
dominant views, today, all understand law as fulfilling a certain instrumental role. Justice
and efficacy, then, are probably the most common relational others to law. For example,
it is common to say that the law should further a certain understanding of distributive
justice – this is the view preferred by philosophers such as John Rawls and Ronald
Dworkin. Others have argued for the efficacy of the law as with the law-and-economics
approach most famously championed by Judges Frank Easterbrook and Richard Posner.
This paper argues for a radically different understanding of the law, as it explains why
the law should indeed be autonomous. The question, however, is not whether the law is
actually autonomous or not – it is obviously not, as the law is too often the plaything of
various lawgivers. The real question is the following – do we want to be autonomous, as
individuals? The answer is obviously yes, individual freedom being a universal value,
and therefore, this paper argues, the law should also be autonomous. There is, as we will
1 Doctorat dÉtat in Legal Science at University Paris 2 – France. Professor at the Faculté de Droit –
Université Laval /Canada.
2 Ph.D. in political studies, Queen`s University. Post-Doctoral Fellow-in-Residence at Harvard University.
Autores convidados
Recebimento em 27/06/2017
Aceito em 07/07/2017
Recebido em 09/11/2017
Aprovado em 16/03/2018
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Volume 89, número 01, jan-jun. 2017
Why Individual Freedom and the Autonomy of Law
Stand or Fall Together
Bjarne Melkevik1
Åsbjørn Melkevik2
1 Two Kinds of Autonomy – Legal and Individual
There is, in legal philosophy, an ongoing debate about the autonomy of law, that
is, about the extent to which law is distinguishable from some other phenomena. The
dominant views, today, all understand law as fulfilling a certain instrumental role. Justice
and efficacy, then, are probably the most common relational others to law. For example,
it is common to say that the law should further a certain understanding of distributive
justice – this is the view preferred by philosophers such as John Rawls and Ronald
Dworkin. Others have argued for the efficacy of the law as with the law-and-economics
approach most famously championed by Judges Frank Easterbrook and Richard Posner.
This paper argues for a radically different understanding of the law, as it explains why
the law should indeed be autonomous. The question, however, is not whether the law is
actually autonomous or not – it is obviously not, as the law is too often the plaything of
various lawgivers. The real question is the following – do we want to be autonomous, as
individuals? The answer is obviously yes, individual freedom being a universal value,
and therefore, this paper argues, the law should also be autonomous. There is, as we will
1 Doctorat dÉtat in Legal Science at University Paris 2 – France. Professor at the Faculté de Droit –
Université Laval /Canada.
2 Ph.D. in political studies, Queen`s University. Post-Doctoral Fellow-in-Residence at Harvard University.
Autores convidados
Recebimento em 27/06/2017
Aceito em 07/07/2017
1 INTRODUÇÃO
O Brasil possui o maior sistema público de transplante de órgãos, tecidos e partes do
corpo do mundo, realizando mais de 20 mil transplantes por ano. Não obstante, o número de
carências cresce, impulsionado por inúmeros casos de possíveis doadores não aproveitados
por conta da ausência de concordância familiar, quaisquer sejam suas razões.
Segundo a legislação atual, Lei n.º 9.434/97, eventual remoção de material humano
aproveitável para doação está condicionada à anuência da família (como sucedânea dos
direitos de personalidade), depois de constatada a morte encefálica. Essa regra independe
inclusive da vontade do próprio doador, ainda que manifestada em vida, que pode acabar
contrariada pela decisão familiar. Tal sistemática foi dada através da Lei n.º 10.211/2001, que
inverteu o paradigma original contido na Lei nº 9.434/97, cujo dispositivo trazia a presunção
tácita de doação post mortem, excetuada em caso de oposição manifestada pelo doador.
Pois bem. A doação de órgãos constitui parte das políticas públicas que visam dar
efetividade aos direitos à vida e à saúde (conforme se percebe da interpretação conjunta dos
Artigos 196 e 199,§ 4º, ambos da Constituição FederalCF/88). Como direito social que é
(Art. 6º, da CF/88), o direito à saúde deve ser promovido pelo Estado, em sua função (ou, por
seu setor) de Estado Social, embasado pelos princípios da igualdade e solidariedade.
A efetivação desses direitos sociais importa, para o Estado, no cumprimento de
prestações materiais e jurídicas, mediante a elaboração de normas penais, de organização e
procedimento. Essas normas, ao estruturar administrativamente as políticas públicas, devem
ser eficientes (Art. 37, da CF/88), maximizando os resultados esperados segundo uma lógica
de custo/benefício. Entretanto, referida busca encontra limites de atuação impostos pelo
Estado Democrático de Direito, cujos parâmetros impõem conciliar ao máximo os direitos
fundamentais em sua completude, i.e., entre os direitos individuais, sociais e coletivos.
Neste trabalho, parte-se da hipótese de que a liberalidade familiar de escolha na
doação de órgãos não poderia suplantar a autonomia do individuo que registra seu desejo de
ser doador. Esse seria um meio termo condizente com um Estado que se propõe a concretizar
direitos fundamentais em todas as suas dimensões. Além disso, acredita-se, essa possibilidade
também teria o condão de aumentar, ainda que virtualmente, o potencial de eficiência das
políticas públicas de doação de órgãos e material humano no Brasil, resolvendo problemas de
Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife, vol.90, n.01, jan. - jun.. 2018
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