Do regime legal dos concessionários de venda de automóveis no caso de fusão ou incorporação das empresas concedentes

AutorArnoldo Wald
Páginas279-306

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Parecer
  1. Consulta-nos a Empresa A, através do seu ilustre Diretor-Adjunto, a respeito de matéria relacionada ao entendimento do disposto na Lei 6.729/79, que dispõe a respeito da concessão comercial de veículos automotores, solicitando-nos seja exarado um parecer versando sobre a exegese desse diploma legal, especificamente no que concerne ao objeto da consulta, que se lastreia nos fatos informados pela Consu-lente e infra-sintetizados.

I - Histórico
  1. Relata-nos a Consulente que a Empresa X e a Empresa Z celebram um Business Combination Agreement objetivando uma futura integração dessas empresas, tendo sido aprovada a fusão, no exterior, de ambas as empresas. Em razão desse fato, a Consulente (que tem como sócia a Empresa X) e a Empresa B (que tem como sócia a Empresa Z) passaram a discutir também a forma e os efeitos de sua integração em nosso país.

  2. Nesse sentido, aventou-se como uma das formas de reorganização do regime legal dos concessionários de automóveis, no caso de fusão ou incorporação das empresas concedentes, a incorporação da Empresa B pela Empresa A. Outra possibi-lidade seria a criação de uma holding, cujo capital seria integralizado por ações desta empresa e pelas quotas da Empresa B.

  3. Considerando-se a opção pela incorporação, que implicaria a integral sucessão dos direitos e obrigações da incorporada pela incorporadora, nos termos do art. 227 da Lei 6.404/76, passaria a existir uma só sociedade e surgiria, pois, o problema de harmonizar essa alteração societária com o preceituado na Lei 6.729/79, acima referida, disciplinadora da concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre. Na hipótese de criação de uma holding, a situação, embora diferente, também merece ser analisada no tocante às suas eventuais repercussões ou à neutralidade da mesma em relação aos contratos dos concessionários.

  4. Efetivamente, concretizada a incorporação haver-se-ia de compatibilizar a distribuição comercial dos veículos das marcas da Empresa A e da Empresa B, considerando-se que a Consulente mantém uma rede para a comercialização de caminhões e ônibus, mediante contrato de concessão regrado pela Lei 6.729/79, e uma outra rede para comercialização dos automóveis da Empresa A importados, não sujeita à disciplina desse diploma legal, mas a um contrato de credenciamento e, ainda, uma rede em formação para a comercialização do automóvel A, disciplinada pela supra-alu-

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    dida lei. Por sua vez, a Empresa B mantém uma única rede, que comercializa tanto os veículos importados, como o utilitário B.

  5. A situação diferenciada relativamente à disciplina legal dos contratos mantidos pela Consulente resultou do entendimento da mesma, no sentido da desnecessidade da submissão do contrato de credenciamento ao regramento da Lei 6.729/79. Já a Empresa B incluiu também a concessão para comercialização de veículos importados no regime deste diploma legal.

  6. Em face da disparidade de regra-mentos para a comercialização de veículos, mantidos pelas empresas nas respectivas concessões e do preceituado no art. 3a, § 2fí dessa mesma lei de regência, surgem dúvidas quanto à incidência desse dispositivo legal no caso de incorporação da Empresa B pela Consulente e, pois, no concernente ao futuro status contratual atinente às relações entre as empresas concernentes, os concessionários e os credenciados. Assim é que tem sido suscitada a possibilidade dos antigos concessionários da Empresa B passarem a comercializar juntamente com os antigos concessionários da EmpresaA o automóvel A, de fabricação desta, a ser iniciada brevemente, enquanto alguns concessionários da Empresa A passariam a comercializar o utilitário B, que está sendo produzido pela Empresa B.

  7. A se admitir essa situação como resultante da integração aventada, com a consequente outorga de duplicidade de marcas a cada concessionário, surgem dúvidas quanto à conveniência dessa incorporação, que poderia ser superada por outros instrumentos societários, como a criação da hol-ding acima referida.

  8. Em razão das dúvidas acima reportadas, foram elaborados os quesitos transcritos a seguir, que as consubstanciam.

II - A consulta
  1. Considerando as premissas acima estabelecidas, formula-nos a Consulente as seguintes perguntas:

  1. Tanto os concessionários da marca da Empresa A como os concessionários da Empresa B teriam direito de, automaticamente, comercializar os produtos lançados pela sociedade incorporadora da mesma classe daqueles que, atualmente, eles comercializam, independentemente da marca dos produtos?

  2. Tanto os concessionários da marca da Empresa A como os concessionários da marca da Empresa B teriam preferência para comercializar os produtos da classe diversa daqueles que, atualmente, comercializam, independentemente da marca dos produtos?

  3. Na hipótese de resposta afirmativa às perguntas supraformuladas, os concessionários das marcas mencionadas poderiam expressamente renunciar aos direitos previstos no § 2Q do art. 3tí da Lei 6.729/79 com relação aos produtos de marca diversa daquela que eles receberam originariamente o direito de concessão?

  4. Partindo sempre do pressuposto da incorporação, a área comercial da Empresa A, em termos de distribuição, entende-se que poderia ocorrer a seguinte situação: os antigos concessionários da Empresa B comercializariam juntamente com os antigos concessionários da Empresa A o automóvel A, de fabricação da Empresa A (a ser fabricado em breve), enquanto alguns concessionários da Empresa A comercializariam o utilitário B, de fabricação da Empresa B (já está sendo produzido)?

  5. Tendo em vista a situação de mistura de produtos de cada marca na comercialização aventada pela área comercial, perguntamos, se, ao invés de se efetuar a mencionada incorporação, não seria juridicamente mais conveniente se criar uma nova sociedade holding que teria o seu capital integralizado por ações e quotas das duas sociedades?

III - Considerações preliminares
  1. A recente evolução económica

    1. Sob o influxo do liberalismo económico, este século apresenta significativa

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      evolução da moderna economia capitalista, o que acarretou o surgimento de diversos fenómenos adequados a propiciar tal expansão. Tais fenómenos influenciariam decisivamente as atividades e práticas empresariais, produzindo efeitos diretos e reflexos nas relações entre as empresas, sempre direcionados à otimização de suas atua-ções no plano económico.

    2. Um desses fenómenos correspondeu a uma crescente concentração empresarial e ao consequente surgimento de verdadeiras macroempresas, normalmente caracterizadas por considerável número de estabelecimentos, que lhes permitem atingir de forma direta os diferentes centros de consumo independentemente de intermediários, além de desfrutar de outras vantagens decorrentes dessa sua situação, e dotadas sempre de grande poder económico, que as habilita a impor soluções a uma gama variada de conflitos de interesses. A convivência, em um mesmo campo de atividade empresarial, de tais macroempresas provocou o acirramento da concorrência entre elas, exigindo de cada uma a adoção de variadas técnicas empresariais direcionadas ao atingimento de suas metas e ao êxito na consecução de seus fins precípuos, centrado na expansão de suas atividades, na afirmação de sua posição no mercado e na realização de lucros.

    3. Na realidade, a sociedade anónima isolada foi substituída, em grande parte, por grupos societários, com dimensões que, em alguns casos, chegaram a ultrapassar, em importância e património, os pequenos Estados soberanos, como assinalado por Anthony Sampson na obra na qual analisa a ITT. Para as multinacionais, a recente globalização tem sido a ocasião de alianças estratégicas, entre empresas de várias nacionalidades, em todos os setores, desde o farmacêutico até o bancário, passando pelo automobilístico, ensejando um sistema de fusões e incorporações, com grandes repercussões no mercado internacional, permitindo que alcançassem a mais adequada economia de escala e reduzissem os seus custos, aumentando a sua rentabilidade.1

  2. O dirigismo contratual

    1. Esta evolução ensejou importantes transformações no regime aplicável aos contratos, que sofreu incontestáveis sofisticações, reconhecidas pela doutrina, pela jurisprudência e até pelo legislador.

    2. É sabido que a autonomia da vontade inspirou o art. 1.134 do Código Civil francês, de acordo com o qual "as convenções têm valor de lei entre as partes". A reação do liberalismo individualista do século XIX contra as limitações impostas pelo Estado, durante a Idade Média, consagrou, assim, o postulado da liberdade dos homens no plano contratual. Dentro do espírito dominante, admitia-se a onipotência do cidadão na gestão e na disponibilidade de todos os bens, garantindo amplamente o direito de propriedade e a faculdade de contratar com todas as pessoas nas condições e de acordo com as cláusulas que as partes determinassem. Houve, na realidade, uma mística contratual, deixando-se ao arbítrio de cada um a decisão de todas as questões económicas, sem qualquer interferência por parte da sociedade.

    3. A autonomia da vontade se apresenta sob duas formas distintas, na lição dos dogmatistas modernos, podendo revestir o aspecto de liberdade de contratar e da liberdade contratual. Liberdade de contratar é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a liberdade contratual é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua realização.2

    4. A liberdade contratual permite a criação de contratos atípicos, ou seja, não

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      especificamente regulamentados pelo direito vigente, importando na possibilidade para as...

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