Do começo ao fim do poema

AutorAlberto Pucheu
Páginas22-53
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2
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Por esta razão, talvez, nem a poesia nem a filosofia,
nem o verso nem a prosa possa jamais levar a cabo
por si a própria empresa milenar. Talvez apenas
uma palavra na qual a pura prosa da filosofia
interviesse, a certa altura, rompendo o verso da
palavra poética e na qual o verso da poesia
interviesse, por sua vez, dobrando em anel a prosa
da filosofia seria a verdadeira palavra humana.
(Giorgio Agamben)
Realizando uma abordagem diretamente a partir do
poema, o pensamento de Giorgio Agamben consegue iluminar,
como poucos, um aspecto da inteligência material poemática
inerente à dinâmica rítmico-semântico-sintática, tal qual um dia,
entre nós, foi requisitado, entre outros, por Haroldo de Campos,
Augusto de Campos e, mais recentemente, Roberto Corrêa dos
Santos, que escreveu:
[1. Investimentos teóricos sobre o poema, apesar da
longevidade desse objeto, não chegam a formar
corpus relevante. 2. Predominaram estudos sobre
os processos de composição técnica e retórica,
exames pautados em modelos clássicos relativos
ao gênero e seus constituintes. 3. Investigações
diversas visaram a circunscrever certo número de
caracteres, por modos humanistas e abrangentes,
do fenômeno entendido por lírico, em diferença
àqueles formadores dos também homogeneizados
épico e dramático. 4. Bem pouco restou para o
esboço da possível corporeidade de uma, diga-se
assim, teoria do poema. 5. As mais valiosas
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propostas situam-se ainda no âmbito do chamado
formalismo russo. 6. Nesse ambiente epistêmico
traçam-se parte das melhores proposições
reflexivas, bem como das melhores análises,
ultrapassando-se aspectos concebidos. 7.
Pesquisas quanto à inteligência do poema em seu
caráter rítmico-semântico-sintático e dedicadas à
sua estratégia de leitura tornaram-se exceções. 8.
Movimento científico de igual porte vem a ser
reposto nos anos 60 por meio do empenho da
semiologia e da semântica estrutural. 9. Conhecer o
poema descreve-se como uma vontade a levantar-
se e a tombar de tempos em tempos por razões
relacionadas ao resistente modo-de-existir disso a
chamar-se poema. 10. Por sua singular
(im)permeabilidade ao factum e por sua condição
de manter-se firme historicamente em sua
radicalizante insistência formal e temática, suas
modificações mantêm-se quase imperceptíveis. 11.
Os hábitos fixados para quem dele se aproxime
acarretam processos receptivos duros.1
Efetivar, portanto, um investimento teórico a partir do
poema, que, diminuindo sua resistência, flagre, potencializando-
o, um dos atos pensantes a regê-lo em sua materialidade
através de procedimentos que a organizam, é uma tarefa
considerável para que possamos fruir as intensidades poéticas,
1 SANTOS, Roberto Corrêa dos. Poema – Proposições Medicinais.
In:Terceira Margem; poesia brasileira e seus entornos interventivos. Revista
do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, ano VIII, número
11, 2004. p. 11-16.
evidenciando-as, quando possível, como uma dinâmica do
poema que, ela mesma pensada, dá o que pensar.
A partir do século XIX, uma das maiores dificuldades da
teoria literária é conseguir estabelecer uma diferença entre
poema e prosa, já que, em um movimento de mão dupla, tanto o
primeiro incorporou a segunda, como esta, aquele, misturando-
se. Em muitos casos, através da radicalização do uso das
imagens, dos ritmos, dos metros, das invenções sintáticas, das
significações ou daquilo que Pound chamou de melopéia,
fanopéia e logopéia, ambos já assimilaram uma linguagem
carregada de sentido ao máximo grau possível2, conseguindo
uma maior condensação da forma verbal como requer, para o
poeta americano, as exigências da poesia.
Transertões3, um curioso ensaio de Augusto de
Campos, oferece amostras sensíveis neste sentido. Nele, a
preocupação não é negar o caráter da prosa euclidiana em
nome da poesia ali presente, mas de demonstrar como
estruturas poéticas demarcam a diferença de uma prosa que
incorpora diversos aspectos historicamente considerados
2 POUND, Ezra. How to read. In: Literary essays of Ezra Pound. New York:
New Directions Book. S/d. p.23. 9ª edição.
3 CAMPOS, Augusto. Transertões. In: Os Sertões dos Campos – duas vezes
Euclides. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. p. 11-50.
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poéticos, ajudando a criar a força desta escrita então híbrida em
todos os aspectos. O poeta-crítico destaca a presença maciça
do controle do ritmo pela artesania métrica do verso embutido na
prosa, exemplificando-a com centenas de frases metrificadas
(pelo menos 500 decassílabos significativos, com predominância
dos sáficos e heróicos, acrescidos de mais de 200
dodecassílabos, dentre os quais muitos alexandrinos, como, por
exemplo, estrídulo tropel de cascos sobre pedras, e versos
livres) e padrões heterométricos que se irmanam a um completo
domínio sonoro do encadeamento das palavras na frase.
Fora isso, ainda acentua diversas passagens com
densas aliterações, sibilações, paranomásias, onomatopéias e
figuras de linguagem como as metáforas, as metonímias e as
antíteses. Se uma prosa como, dentre outras, a de Euclides,
absorve elementos poéticos, criando uma indiscernibilidade
entre os gêneros, e se os poetas inventaram tanto o verso livre
quanto o poema em prosa, como estabelecer a diferença entre
poesia e prosa? Essa pergunta não vela, obviamente, um desejo
de refluxo que afaste a poesia da escrita de ficção, ensaística ou
outra prosaica de modo geral, mas expõe a tentativa de
conquista de mais um elemento de compreensão da escrita, que
nos leve a uma ampliação das possibilidades da própria escrita,
da leitura e do pensamento.
Visando prolongar uma reflexão que passa por
Everardo, o Alemão, Niccolo Tibino, Brunetto Latini e Dante,
chegando à frase de Valèry apropriada por Jackobson, que diz
ser o poema a hesitação prolongada entre o som e o sentido, os
conceitos utilizados por Agamben para determinar o
enjambement e a cesura como as únicas possibilidades de
distinção entre o verso e a prosa estão em inteira consonância
com seus arquissemas gerais. Nos quatro textos que definem
institutos poéticos decisivos4, todos ligados a limites e
4 AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. IN: Idée de la prose. Traduit de
l’italien par Gérar Macé. Paris: Christian Bourgois Éditeur, 1998. p. 21-24.
Idée de la césure. IN: Idée de la prose. P. 25-27. The end of the poem. In:
The end of the poem. Translated by Daniel Heller-Roazen. Califórnia:
Stanford University Press, 1996. p. 109-115. Este texto foi traduzido para o
português por Sérgio Alcides e publicado na revista Cacto, número 1, em
agosto de 2002. p. 142-149. AGAMBEN, Giorgio. E O Cinema de Guy
Debord; imagem e memória. Texto acessado no sítio eletrônico “Blog
Intermídias”, .blogspot.com/2007/07/o-cinema-de-guy-
debord-de-giorgio.html>, no dia 18 de fevereiro de 2008. Este texto é a
transcrição – revista por Agamben – de uma conferência pronunciada em um
seminário consagrado a Guy Debord, com uma retrospectiva de seus filmes,
durante a 6ª Semana Internacional de Vídeo, em Genebra, no ano de 1995.
Com 3 outros artigos, este texto foi publicado no livro, no momento
indisponível para venda, intitulado Image e Mémoire, Éditions Hoëbeke, 1998
(p.65-76). (Collection Arts & Esthétique)

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