Do estado de falido: sua configuração - inovações da nova lei de recuperação e falência. "Crise econômico-financeira" - Impontualidade - Descumprimento de qualquer obrigação no curso do processo - Rejeição do plano de recuperação pela assembleia geral de credores: perguntas em aberto, aguardando respostas fechadas

AutorPaulo Salvador Frontini
Páginas7-24

Page 7

Este pequeno estudo é dedicado a Fábio Konder Comparato, jurista e filósofo, professor ilustre e amigo admirável.

1. O tema

Recentes reflexoes, sobre as quais escrevemos, em torno a "caracterizacao da falencia", em face da Lei de Recuperacao a Falecia, levaram-nos a rememorar, naquele texto, os criterios da antigua e revogada Lei de Falencias e compara-los em face da legislacao ora vigente1. Identificamos, entao, ao longo da Lei n. 11.101, um rol de

Page 8

fatores que caracterizam a falência, e que autorizam o Poder Judiciário a decretá-la.2

As considerações, então desenvolvidas, sugerem novas meditações. Delas resultam inúmeras dúvidas.

Ademais, despontam as primeiras obras de literatura jurídica sobre a nova legislação concursual.3 Pontos controvertidos, ou obscuros, estão por merecer mais detido exame.

O tema da recuperação de empresas, em face de estado pré-falimentar, pioneiramente tratado entre nós, há mais de trinta anos, por Fábio Comparato,4 agora está legislado. Parece-nos, assim, oportuno dar sequência ao registro das dificuldades e controvérsias que a nova legislação sugere.

2. Sobre o "estado de falido"

O estado de falido somente abrange os agentes económicos submetidos ao regime da Lei de Recuperação e Falências. Em sintonia com o Código Civil de 2002, a Lei n. 11.101 inclui no âmbito de seus efeitos as figuras do empresário e da sociedade empresária, cujo conceito é bem mais amplo, como bem observa Haroldo Ver-çosa, do que o do antigo comerciante ou da sociedade comercial, únicos destinatários da revogada Lei de Falências.5

O estado de falido pode ser considerado sob dois enfoques.

2.1 Pelo primeiro deles, achando-se o empresário ou a sociedade empresária, em pleno exercício de seus direitos, mas havendo sintomas de que sua situação efetiva não é de normalidade, descreve o legislador uma série de hipóteses em que a falência está caracterizada. A partir dessas hipóteses, sobrevindo a demonstração de que isso se confirma, a lei autoriza o Poder Judiciário, mediante o devido processo legal, a decretar a falência.

Diz-se, nesse contexto, que a situação de fato é de falência. A caracterização autoriza a suposição de que, em termos económicos, a situação de falência já existe. O empresário está falido, mas inexiste a situação, oficial, de falência, que somente se oficializa mediante decisão formal do Judiciário.

2.2 Aqui desponta o segundo ângulo pelo qual se pode considerar o estado de

Page 9

falido. Corresponde ao que resulta da sentença judiciária que, decretando a falência, constitui o estado de falido.

Sob o rigor jurídico, o estado de falido somente se forma quando sobrevêm esse evento processual: a decretação da falência pelo órgão jurisdicional.

Na reai verdade, o estado de falido é uma nova situação jurídica que somente se constitui após a sentença de falência. Ou seja, o empresário, até então posicionado em meio a um complexo de relações jurídicas próprias de sua qualificação, torna-se, pela sentença de falência, um empresário falido. Ser falido constitui uma nova situação jurídica, anterior à precedente. Daí ser correio falar-se cmestado de falido. "Estado", aí, no sentido de status, um complexo de relações jurídicas, de deveres, direitos, obrigações, sujeições, que se ajusta ao que, na moderna teoria do negócio jurídico, se chama justamente situação jurídica.6

2.3 Em termos jurídicos, a posição precedente, em que se caracteriza a falência, mas esta ainda não decretada, não pode ser enquadrada como sendo de estado de falido. Trata-se, com efeito, de um quadro pré-falimentar, que autoriza a instauração da ação de conhecimento chamada pedido de falência, em função da qual, observado o rito procedimental cabível, pode ser proferida a sentença de falência.

Esse quadropré-falimentar se delineia em razão de fatores, previstos na legislação, que caracterizam a falência.

Há, em resumo, um rol de fatores (v.g., circunstâncias) que, uma vez verificadas, e sem razão jurídica que autorize sua ocorrência, autorizam o Poder Judiciário a decretar a falência.

Na verdade, em face de uma, ou mais de uma, dessas circunstâncias, fica caracterizada a falência, e o estado de falido pode, então, ser constituído de direito, por sentença.

2.4 É interessante, nesse contexto, fazer a ponderação de que, a nosso ver, a situação de falência, ou o estado de falido, nada tem a ver, necessariamente, com a insolvabilidade.

Insolvável é quem não tem ativo patrimonial para solver o passivo.

Pertinente, nesse quadro, a observação de Comparato, destacando a diferença entre a acepção dos vocábulos "inadimplemento", "insolvente" e "insolvável", cujo emprego considera adequados à sistemática da legislação falimentar estabelecida pelo Decreto-lei n. 7.661/1945, em vigor ao tempo do estudo doutrinário invocado. Inadimplemento é o simples descumpri-mento de obrigação, no seu vencimento, sem que se indague sobre as razões disso. Insolvência é o inadimplemento qualificado pela falta de razão em direito. Insolvabilidade é o estado de inaptidão económica para adimplir.7

Não se pode dizer que o falido sempre seja insolvável. É perfeitamente imaginável um quadro empresarial em que o ativo patrimonial é maior do que o passivo, mas falta liquidez. Sobrevêm, daí, a impontualidade, desamparada de motivo juridicamente válido para ocorrer. A consequência será o decreto de falência, apesar de existir um ativo patrimonial superior ao passivo.

Por outro lado, sabe-se muito bem de situações em que, apesar do passivo ser superior ao ativo, o empresário logra manter em dia seus compromissos. Não se exteriorizam nem impontualidade nem outros fatores que caracterizam a falência. Assim, apesar do déficit patrimonial, o estado de falido não se configura, nem pode ser constituído.

É justamente o contraste entre as posições de insolvabilidade sem caracterização (déficit patrimonial) e de estado de falido sem déficit patrimonial que imprime

Page 10

extraordinário vigor ao instituto da recuperação da empresa. Para essas duas situações, busca a nova lei viabilizar uma solução de soerguimento da empresa, mediante sua recuperação.

Que conclusão se tira dessas asserções?

Parece-nos cabível, diante de hipóteses como essas, afirmar que o estado de falido é uma situação jurídica que não se confunde, obrigatoriamente, com a insol-vabilidade.

Em síntese: o estado de falido pode caracterizar-se e autorizar sua constituição jurídica, por sentença, independentemente de haver, ou não, uma situação real de ati-vo insuficiente perante o passivo. E, por outro lado, um quadro de insolvabilidade pode estar encoberto pelo fato de que as circunstâncias caracterizadoras da falência não haverem se externado.

3. Questões a examinar: fatores de caracterização da falência

Estas considerações prévias prestam-se a demarcar duas situações diferentes, realçando justamente sua ocorrência na vida real. De um lado, a situação às falido, um status jurídico que antes se configura (caracterização da falência) e depois se oficializa por sentença, e de outro lado a de insolvável, um nítido quadro económico, não necessariamente associado ao estado de falido.

Neste estudo, interessa examinar quais são os fatores, ou circunstâncias em que, em face da Lei n. 11.101, a falência se configura.

Mais precisamente, interessa-nos neste texto, apontar o que há de novo em tema de caracterização da falência. ,

Fica ressalvado que o estado de falido, após oficialmente constituído por sentença, também faz por merecer meticulosa análise e interpretação. Mas, por ora, esse segundo tema escapa ao alcance destes apontamentos.

4. Critérios de caracterização da falência postos pela nova Lei

Resumidamente8, na legislação agora posta, acham-se alinhados pelo menos estes critérios de caracterização da falência:

  1. impontualidade no pagamento de obrigação líquida materializada em um ou mais de um título executivo extrajudicial, de valor equivalente - na data do pedido de falência-a quarenta salários mínimos, sempre após o competente protesto (art. 94,1);

  2. impontualidade no pagamento de obrigação líquida constante de um ou mais de um título executivo judicial, nas mesmas condições da hipótese anterior (art.94, I, também);

  3. descumprimento de mandado judicial que, em processo de execução, determina que o empresário ou sociedade empresária pague, deposite ou nomeie à pe-nhora bens em garantia da execução, dentro do prazo legal (art. 94, II);

  4. crise econômico-financeira, que, a critério do devedor (empresário ou sociedade empresária), não pode ser superada mediante recuperação judicial ou extrajudicial (art. 105). Eis aí a autofalência;

  5. ...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT