Do endosso-mandato (Código Civil, art 917)

AutorMarcelo Vieira von Adamek
Páginas108-140

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1. Introdução

O endosso-mandato, também conhecido por endosso-procuração,1 constitui uma espécie de endosso-impróprio,2 por meio da qual o endossante-mandante, sem

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transferir os direitos inerentes ao título, apenas legitima a prática de atos de cobrança, em seu nome e por sua conta, pelo endossatário-mandatário.

A relevância do endosso-mandato resulta não apenas da possibilidade de atribuir a prática dos atos de cobrança a terceira pessoa designada pelo credor, evitando gastos e perda de tempo com deslocamentos,3 já que idêntico resultado pode ser também alcançado através de um simples mandato. Na realidade, a sua relevância prática evidencia-se precisamente na simplicidade e na agilidade com que essa atribuição pode ser feita, prescindindo de outorga solene de poderes por instrumento em separado; basta a mera aposição da cláusula de endosso-mandato no título, sem outros formalismos.4

Neste estudo, iremos analisar o endosso-mandato no direito pátrio.

2. A disciplina legal e o seu objeto: relações externas

O endosso-mandato encontra-se regulado no art. 917 do Código Civil5 (cuja re-dação foi baseada no art. 2.013, do Código Civil italiano6), aplicável aos títulos atípicos e aos títulos típicos que não possuam regra ou remissão própria nas suas respectivas leis de regência (Código Civil, art. 903). Além disso, e com praticamente idêntica conformação, o endosso-mandato vem também disciplinado no art. 18 da Lei Uniforme sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias (incorporada ao direito interno pelo Decreto n. 57.663, de 24 de janeiro de 1966),7 e no art. 26, da Lei do Cheque (Lei

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n. 7.357, de 2 de setembro de 1985).8 Em todos os casos, a disciplina pátria é convergente e encontra-se alinhada às modernas tendências de direito comparado; avançou muito em relação à revogada Lei Sa-; raiva (Decreto n. 2.044, de 31 de dezembro de 1908), cujo art. 82, § P, regulava o endosso-mandato de forma bastante lacónica, suscitando várias dúvidas às quais adiante iremos nos referir.

Nesta altura, porém, e até mesmo para evitar incompreensões, insta destacar o real alcance da disciplina legal sobre endosso-mandato, à qual frequentemente se atribui amplitude bem maior do que a que efetiva-mente possui. Para corretamente compreender o papel do endosso-mandato e de sua particular disciplina legal, é preciso, de início, afastar a equivocada ideia, bastante difundida, de que o endosso-mandato constitui, de per si, o próprio mandato, quando é certo que ele é, simplesmente, o modo cartular para legitimar o endossatário-man-datário à prática dos atos próprios de cobrança, em nome e por conta do endossante-mandante. Por outra retórica, o endosso-mandato não define como, quando e sob quais condições o endossatário-mandatário deve ou pode praticar os atos de cobrança; não estabelece os direitos e os deveres das partes; apenas legitima, perante terceiros, a prática dos atos de cobrança.

O objeto próprio da disciplina legal do endosso-mandato não são as relações internas estabelecidas entre endossante e endossatário (= negócio jurídico representativo), as quais se regem pelo direito comum pertinente ao negócio subjacente9 (normalmente de mandato, mas, eventual-mente, de locação de serviços ou outra natureza qualquer). O seu objeto são apenas as relações externas envolvendo aquelas partes e os terceiros (= poder de representação).10

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3. Conceito

À vista das considerações apresentadas no item precedente, percebe-se que, conquanto ilustrativo, não seria mais rigorosamente exato afirmar, como fazia a doutrina clássica, que "o endosso-mandato é um mandato escrito, formal e especial",11 na medida em que o endosso-mandato (= ato unilateral) não é o mandato em si (= contrato), mas o instrumento de legitimação da pessoa designada pelo credor ao "exercício e conservação dos seus direitos cambiários, sem dispor deles", como advertiu Pontes de Miranda.12 Neste sentido, o endosso-mandato é o registro, no título e para conhecimento de terceiros, que o endossatário está legitimado a praticar todos os atos necessários à cobrança, exce-ção feita àqueles expressamente restringidos no contexto do endosso ou que não se enquadrem dentro do mister próprio da cobrança.

Por isso, ao invés de confundi-lo com o próprio mandato (que apenas em via presuntiva se pode divisar na relação subjacente13), consideramos mais apropriado conceituá-lo como sendo a forma cartular pela qual o credor cambiário, sem transferir o título ou assumir qualquer garantia, legitima o endossatário-mandatário a exercer os direitos de cobrança, em seu nome e por sua conta.

O endosso-mandato, como se vê, é uma espécie de endosso-impróprio na qual o endossatário-mandatário atua sempre em nome e por conta do endossante-mandan-te, com as seguintes particularidades, adiante melhor esmiuçadas, a saber: (i) o endossante para cobrança não transfere o título nem garante o seu pagamento; (ii) com a aposição do endosso, o endossante não deixa de ser proprietário da cártula e não fica impedido de exercer os direitos cambiários;14 (iii) o endossatário só poderá endossar novamente o título com a mesma qualidade com que o possui, sendo ineficaz o seu endosso pleno; (iii) ao endossatário-mandatário poderão ser opostas as exceções oponíveis ao endossante-mandan-te, e apenas estas; e (v) o mandato subjacente ao endosso-mandato não se extingue com a morte do endossante ou a sua superveniente incapacidade.

4. Local e requisitos

Os requisitos formais e subjetivos para a instituição do endosso-mandato são es-

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sencialmente os mesmos do endosso trans-lativo,15 mas com certas particularidades em relação às pessoas legitimadas a instituí-lo, à época em que poderá ser lançado e, sobretudo, às suas expressões características (item 4.1, infra).

Assim é que o endosso-mandato poderá ser aposto no título pelo seu proprietário (tomador ou possuidor legitimado por uma série ininterrupta de endossos translativos) e, também, por quem o recebeu através de um endosso-caução (CC, art. 918; LU, art. 19) ou, até mesmo, por endosso-mandato (CC, art. 917, § F; LU, art. 18; e LCh, art. 26) - neste último caso, porém, valendo o novo endosso-mandato como substabelecimento.

Além disso, o endosso-mandato não sofre restrições temporais. Poderá ser lançado indistintamente antes ou depois do vencimento ou do protesto do título, e sempre gozará da mesma eficácia,16 ao contrário do que sucede com o endosso translativo póstumo.

No mais, como qualquer declaração cartular, é preciso que o endossante seja agente capaz17 e, também, que a sua assinatura e as expressões características do endosso-mandato sejam apostas no verso ou no anverso do próprio título; se lançadas fora do título, terceiros não terão como aferir a legitimidade do endossatário-manda-tário do contexto do próprio documento e, portanto, o endosso será ineficaz, por não atendido o princípio da literalidade. Também o endosso parcial é vedado; não, porém, o endosso simultâneo ou conjunto.

4. 1 Expressões características

Para que se possa cogitar do endosso-mandato é preciso que seja aposta no título alguma expressão apta a revelar a terceiros o propósito do endossante de legitimar o endossatário apenas à prática dos atos de cobrança, até mesmo para diferenciá-lo de outra espécie de endosso.18 Lembre-se, ademais, que, em matéria de representação, a regra geral é a de que o representante é obrigado a provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado, a sua qualidade e a extensão de seus poderes (CC, art. 118).

Em muitos casos, a própria lei fornece exemplos de cláusulas características de endosso-mandato (LU, art. 18; e LCh, art. 26), mas, segundo anotaram Georges Ripert e René Roblot, "il ne défend pas d'en imagi-ner d'autres".19 Nesta linha, são características as seguintes cláusulas apostas com o endosso: "endosso-mandato", "endosso-procuração", "valor em cobrança", "para cobrança", "por mandato", "por minha conta", "para me...

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