Do Direito à Liberdade de Consciência e de Crença e ao Livre Exercício dos Cultos Religiosos (art. 23 ao art. 26)

AutorPaula Carmo Name
Páginas173-192

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Art. 23. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.

Art. 24. O direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana compreende:

I - a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins;

II - a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões;

III - a fundação e a manutenção, por iniciativa privada, de instituições beneficentes ligadas às respectivas convicções religiosas;

IV - a produção, a comercialização, a aquisição e o uso de artigos e materiais religiosos adequados aos costumes e às práticas fundadas na respectiva religiosidade, ressalvadas as condutas vedadas por legislação específica;

V - a produção e a divulgação de publicações relacionadas ao exercício e à difusão das religiões de matriz africana;

VI - a coleta de contribuições financeiras de pessoas naturais e jurídicas de natureza privada para a manutenção das atividades religiosas e sociais das respectivas religiões;

VII - o acesso aos órgãos e aos meios de comunicação para divulgação das respectivas religiões;

VIII - a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais.

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Art. 25. É assegurada a assistência religiosa aos praticantes de religiões de matrizes africanas internados em hospitais ou em outras instituições de internação coletiva, inclusive àqueles submetidos a pena privativa de liberdade.

Art. 26. O poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de:

I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas;

II - inventariar, restaurar e proteger os documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural, os monumentos, mananciais, flora e sítios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas;

III - assegurar a participação proporcional de representantes das religiões de matrizes africanas, ao lado da representação das demais religiões, em comissões, conselhos, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público.

COMENTÁRIOS

1 A Liberdade Religiosa

Com a separação entre o Estado e a Religião, um dos direitos considerados fundamentais foi a liberdade de religião:

"A Lei Fundamental protege a liberdade, que os indivíduos utilizarão como bem entenderem, de professar, individual ou coletivamente, em privado ou em público, as próprias convicções, religiosas ou não, sob todas as formas e através de todos os meios, em termos compatíveis com os princípios básicos de justiça e reciprocidade." 1

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O princípio da liberdade do ponto de vista moral foi exposto por Robert Audi e Nicholas Wolterstorff, segundo os quais uma sociedade sem liberdade religiosa não pode ser considerada livre, pois para haver democracia é necessário liberdade. Logo, a busca por uma sociedade livre e democrática pressupõe a garantia da liberdade religiosa; a liber-dade de crença, por sua vez, impede que o Estado ou qualquer outra pessoa incuta, forçosamente, na população, determinada crença religiosa; já a liberdade de culto abrange o direito à assembleia religiosa pacífica e o direito de oferecer orações por alguém; e, por fim, a liberdade de ocupar-se com cerimônias e rituais de uma religião, desde que tais práticas não violem os bons costumes. O preceito de liberdade demo-crática é ter como princípio fundamental "a liberdade", pois sem ela não há garantia contra uma coerção governamental2.

Compõe os direitos fundamentais, em nossa Constituição, a garantia à liberdade religiosa que está prevista no artigo 5º, VI: "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias".

Está claramente exposta a possibilidade de se optar por deter-minada religião, isto é, acreditar em determinados fundamentos de ordem religiosa que constituem uma das diversas religiões existentes; como se permite, também, a não participação em religião alguma.

Para a prática das diversas modalidades de religiões que já existem, ou que venham a existir, percebe-se o interesse de torná-las públicas, na maioria das vezes, angariando a maior quantidade de fiéis que for possível. Utilizam-se, como mecanismos para essa finalidade, os diversos meios de comunicação, mas o mais tradicional ainda é o culto, e a Constituição engloba expressamente a sua proteção:

"A liberdade religiosa tem como traço fundamental a liberdade de escolha do indivíduo no tocante à sua religião. No entanto, a religião não se esgota na fé ou crença. Ela necessita de uma prática religiosa ou culto como um dos seus elementos

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fundamentais. Isso acaba por resultar na inclusão, dentro da liberdade religiosa, da possibilidade de organização destes mesmos cultos, o que por sua vez dá lugar à criação de igrejas e templos. Este último elemento é de extrema importância, uma vez que da necessidade de assegurar a livre organização dos cultos surge, inevitavelmente, o problema da relação destes com o Estado."3O artigo 23 do Estatuto da Igualdade Racial traz ser "inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a sua liturgia".

2 A Liberdade de Consciência

A liberdade de consciência, como segmento do livre pensamento, permite ao indivíduo dispor das suas convicções em diversos campos de atuação.

No sentido religioso, a pessoa pode livremente optar por seguir uma religião, ser ateu, ser agnóstica, ter religião e praticá-la assiduamente, ter fé e não seguir doutrina determinada, assim como mudar de religião se assim desejar.

A liberdade de consciência, dentro do contexto religioso, demons-tra a livre possibilidade de o indivíduo escolher ter ou não uma religião, e, portanto, vincula-se à liberdade religiosa, pois, além da livre escolha entre possuir uma religião ou não, permite, dentro de um rol de manifestações religiosas, optar por uma, por duas ou mais, ou, por nenhuma, bem como ser livre para mudar de opinião sobre sua fé.

A consciência pode ser ilustrada, no foro íntimo do indivíduo, como um círculo, que representa o pensamento enquanto ainda não manifestado, dentro do qual se encontraria um círculo ainda menor composto pela crença, que armazena as possibilidades de adesões do indivíduo a diferentes convicções, entre elas as convicções religiosas.

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Afirma José Afonso da Silva:

"A Constituição de 1967/1969 não previa a liberdade de crença em si, mas apenas a liberdade de consciência e, na mesma provisão, assegurava aos crentes o exercício dos cultos religiosos (art. 153, § 5º). Então, a liberdade de crença era garantida como simples forma da liberdade de consciência. A Constituição de 1988 voltou à tradição da Constituição de 1946, declarando inviolável a liberdade de consciência e de crença (art. 5º, VI), e logo no inciso VIII estatui que ninguém será privado de seus direitos por motivo de crença religiosa."4Diante dessa distinção constitucional entre consciência e crença, é possível perceber que o conceito de consciência pode fluir também em sentido oposto ao de crença; assim o incrédulo tem seu direito de não crer, baseado em sua liberdade de consciência.

A liberdade religiosa encontra na própria liberdade de consciência um obstáculo ao deparar com os descrentes quanto à religião, e deve saber conciliar seu interesse de forma a não invadir, e, ao mesmo tempo, respeitar a liberdade daquele que não tem crença religiosa.

Segundo Bastos e Meyer-Pflug,

"A liberdade de consciência não se confunde com a de crença. Isso porque uma consciência livre pode determinar-se no sentido de não ter crença alguma. Resulta, pois, da liberdade de consciência uma proteção jurídica que inclui os ateus e agnósticos. (…) Frise-se que a liberdade de consciência pode ser definida como uma das faces da liberdade de pensamento, uma vez que diz respeito às convicções de cada indivíduo, seus valores e sua conduta moral. Trata-se do comportamento de cada um diante da sociedade." 5

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho considera a liberdade de consciência uma questão de foro íntimo, e, por consequência, é livre sempre, pois o Estado não tem como obrigar as pessoas a pensarem dessa ou daquela forma. Sua manifestação, sim, extrapola o foro íntimo e alcança os demais indivíduos, e à vista da necessidade de o indivíduo expor suas convicções aos demais e, ainda, convencê-los delas é que deve ser protegida e ao mesmo tempo controlada a liberdade de consciência diante das demais liberdades6.

Destarte, a liberdade de consciência gera como consequência a permissão ao indivíduo de se expressar conforme sua filosofia, não somente em âmbito íntimo, mas também explicitamente, junto ao público. Implica, portanto, não receber tratamento diferenciado por parte do Estado por possuir e demonstrar seus ideais, inclusive suas doutrinas religiosas, conforme o artigo 5º, VIII, da CF.

Diz Lepargneur:

"Em toda sociedade pluralista, sucedem, normalmente, momentos em que ideologias diferentes comandam comportamentos radicalmente...

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