A judicialização do direito da concorrência

AutorJosé Ignacio Botelho de Mesquita
Páginas7-18

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I Introdução
  1. Avida acadêmica, na área do Direito, tem de sedutor o ser um campo aberto ao puro raciocínio, voltado frequentemente a retraçar o rumo das linhas internas que governam os seus institutos, emaranhadas não raro de tanto que sobre elas se escreve, voltado outras vezes à descoberta do sistema apropriado a cada um deles, ou senão ao modo como se inserem em outro sistema mais amplo ou conjunto de sistemas, mas sempre na tentativa de descobrir o modo de melhorar o seu funcionamento na prática, de buscar a sua perfeição enquanto meio de resolver problemas, remover impasses, compor harmoniosamente o conjunto das normas em que se inserem.

    É um desafio à inteligência, agradável às vaidades, mas suscetível, ele mesmo, de revisões sucessivas, porque no caminho da sua criação, não caminha, o direito, da razão para os fatos, mas ao contrário. O que põe a funcionar a todo vapor o raciocínio jurídico não é algum estímulo meramente intelectual; é o despontar agressivo do problema candente. Daí ser insuperável, assim penso, a emoção de tomar nas mãos o pro-blema, enquanto fato vivo, latejante, e contemplá-lo com a certeza de que para ele o Direito tem cura e, então, dar a partida ao caminho de volta, ladeira acima, do fato para o Direito.

    Ao examinar qualquer instituto jurídico, principalmente quando o exame é feito para fins didáticos, a primeira pergunta que ocorre é: qual é o problema para cuja solução este instituto serve? Ao examinar o fato, a pergunta é a oposta: qual é o instituto que para esse fato é a solução.

  2. À luz desse entendimento, escolhi um caso concreto cujo exame bem possibilita verificar de que modo convive a jurisdição civil com a "jurisdição" do CADE1 e apurar dentro de que limites uma decisão do CADE estaria sujeita ao controle do Poder Judiciário, bem como em que medida, dentro de tais limites, seria uma decisão do Conselho passível de anulação em juízo.

    É tema que tem provocado muito debate. Muito se tem discutido sobre a chamada "judicialização" do direito da con-

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    corrência, mas sempre, parece, examinado esse tema a partir de suas vertentes teóricas, conceituais, comumente envoltas em preconceitos, seja contra empresários privados, seja contra administradores da coisa pública, o que sempre dificulta sua an-coragem no chão cru do Direito.

    Os casos concretos forçam o aprofundamento das questões e forçam os olhos a se abrir para aspectos que de outro modo escapariam à percepção do observador.

  3. O caso escolhido, nascido de uma acusação de formação de cartel, um caso real, foi o de uma decisão do CADE cujas origens se prendem ao resultado de um procedimento perante a SDE,2 eivado de vícios que muito o comprometiam. Daí os problemas que mais adiante serão expostos, a começar pelo problema mais amplo de que já se passa a tratar.

II Do controle judicial dos atos administrativos em geral
  1. A despeito de muito conhecida a história do controle judicial dos atos administrativos, é pertinente essa primeira indagação, dadas as peculiaridades de que se revestem os processos perante o CADE e as funções que lhe foram atribuídas, extremamente próximas das que competem ao Poder Judiciário. Basta ver que a Lei n. 8.884/1994 define o CADE como "órgão judicante, com jurisdição em todo o território nacional".3

    Longe está a “jurisdição" do CADE, evidentemente, da jurisdição contenciosa de competência exclusiva dos órgãos do Poder Judiciário, mas não tão longe assim da jurisdição voluntária,4 com a qual guarda estreita semelhança, especialmente quando o processo perante o CADE se põe em marcha por provocação de alguém di-retamente interessado na cessação da prática anticoncorrencial denunciada na representação por ele promovida.

    Com efeito, em tal caso agirá o CADE, como faria qualquer órgão judicial no exercício da jurisdição voluntária: decidirá um processo sem lide, tendo por escopo, em lugar da composição de dois ou mais interesses em conflito, a tutela de um único interesse, de que é titular a comunidade toda (Lei n. 8.884/1994, art. 1o, parágrafo único) a cujo final, no entanto, pode resultar inteiramente satisfeito, não apenas o interesse comum do povo para cuja defesa se instituiu o CADE, mas também, e principalmente, o direito individual do terceiro prejudicado que promoveu a representação. É o que explica, aliás, a aplicação subsidiária, ao processo administrativo perante o CADE, das disposições do Código de Processo Civil (Lei n. 8.884/1994, art. 83).

    Tendo presente esta semelhança entre os dois tipos de processo, e, principalmente, o alto grau de especialização do CADE na matéria de sua competência, tem de fato inteira pertinência indagar em quê estariam decisões do CADE sujeitas ao controle judicial, e a título de quê um órgão do Estado, perito em direito da concorrência, teria que ter as suas decisões expostas ao controle de outro órgão do mesmo Estado para o qual aquela matéria não se apresenta como obje-to precípuo de sua especialidade.

  2. Respondendo esta indagação, é conveniente lembrar que a evolução do controle judicial dos atos administrativos está estreitamente ligada ao regime político-jurí-dico dominante em cada estado em cada ciclo de sua história. Esta lembrança, mais que conveniente, é necessária para que nunca se perca de vista a influência que a ideologia política exerce, ou pode exercer, na ampliação ou redução dos limites dentro dos quais será lícito ao Poder Judiciário controlar os atos do Poder Executivo.

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    Sob a monarquia absoluta, por exemplo, estando enfeixados todos os poderes do Estado nas mãos de uma única pessoa, o soberano, é impensável atribuir a outrem o julgamento dos atos por ele praticados. Da mesma forma, num Estado em que impere um exacerbado apego à tripartição dos poderes, o controle, por um deles, dos atos praticados por qualquer dos outros será sempre tido como ingerência inadmissível de um dos poderes na esfera de atribuições do outro; assim foi na França pós--revolucionária até o momento em que se passou a admitir o recurso por excesso de poder, que outra coisa não era, como bem advertiu Laubadère, "senão um antigo recurso hierárquico administrativo evoluído e transformado".5

    Na jurisprudência brasileira, da proclamação da República e até a primeira metade do século XX, prevaleceu o entendimento fielmente reproduzido nos ensinamentos de Seabra Fagundes de que, ao Poder Judiciário, seria sempre vedado apreciar o mérito dos atos administrativos, cabendo-lhe "examiná-los, tão somente, sob o prisma da legalidade". O mérito do ato administrativo, compreendendo "as questões relativas ao acerto, à justiça, à equidade, etc.", era considerado "de atribuição exclusiva do Poder Executivo, e o Poder Judiciário, nele penetrando, faria obra de administrador, violando, com isso, o princípio de separação e independência dos poderes".6

    Note-se, porém, que na lição de Seabra Fagundes, que é do final da primeira metade do século passado, a perspectiva do ato sob o ponto de vista da legalidade já era suficientemente ampla para permitir ao Judiciário verificar se tais atos "obedeceram as prescrições expressamente determi-nadas, quanto à competência e a manifestação de vontade do agente, quanto ao motivo, ao objeto, à finalidade e à forma", antecipando-se ao que, duas décadas mais tarde, viria a constituir disposição expressa de lei.7

    Nessa fase, conforme salienta Maria Sylvia Zanella Di Pietro a respeito do direito francês, relembrando o ensinamento de Consuelo Sarria, já se mostrava restringida a primitiva amplitude da discriciona-riedade da Administração "pelos princípios gerais de direito, em especial a racio-nalidade ou razoabilidade, a justiça, a igualdade, o direito de defesa".8

    A vigente Constituição brasileira estendeu enormemente o campo do controle judicial dos atos administrativos, ao submetê-los não mais apenas ao princípio da legalidade, ainda que sob aquela ampla perspectiva acima acenada, mas também aos princípios da impessoalidade, da moralidade e da eficiência; princípios estes que limitam de tal modo a discricionarie-dade administrativa que hoje não há praticamente aspecto nenhum do ato administrativo que não esteja exposto ao controle do Poder Judiciário.

    O próprio mérito do ato administrativo, reduzido ao juízo sobre a oportunidade e conveniência do ato, antes inexpugnável, não foge mais ao controle judicial sob o ângulo da finalidade e da moralidade administrativa.

  3. Isto, porém, não pode ser levado ao extremo de autorizar a conclusão de dispor hoje o Poder Judiciário de um ilimitado poder de controle sobre os atos do Poder Executivo, à feição de um superfeitor. Tal exagero implicaria necessariamente incompatibilidade com o princípio de que os três Poderes são independentes e harmônicos entre si e favoreceria o crescimento de um Poder Judiciário ditatorial.

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    O que se há de entender é que o juízo político de conveniência e oportunidade do ato consubstancia o poder discricionário do Executivo, que se mantém inviolável na medida em que se contenha dentro dos limites que lhe são impostos pelos já mencionados princípios constitucionais.

  4. O que daí se conclui para o caso específico do CADE é que ao Poder Judiciário nunca caberá substituir-se ao CADE na definição do que convém e é oportuno à defesa da ordem econômica, competindo-lhe, porém, em cada caso, dizer se, perante os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade e da eficiência, o ato deve, ou não, ser tido como válido e eficaz.

    Vale dizer, a melhor definição do que convenha e seja oportuno à defesa da ordem econômica, do ponto de vista...

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