Do direito a cidade ao comum urbano: contribuicoes para uma abordagem lefebvriana/From the right to the city to the urban commons: contributions to a lefebvrian approach.

AutorFilho, Joao Bosco Moura Tonucci
  1. Introducao (1)

    A ideia do comum ocupa, cada vez mais, um espaco de destaque na gramatica e no imaginario politico de movimentos anticapitalistas e democraticos que recusam a subordinacao de todas as esferas da vida social e natural a logica da mercadoria, da competicao e da propriedade; nos termos de Dardot e Laval (2015), trata-se de um principio politico antagonico a racionalidade neoliberal. A maior difusao do comum como slogan politico teve inicio com os movimentos ambientalistas e altermundialistas na decada de 1990, ganhando forca com o novo ciclo de protestos globais que, desde 2011, questionam a hegemonia neoliberal, as politicas de austeridade e os regimes nao democraticos.

    A enfase nos principios de autonomia, democracia direta, horizontalidade e autogestao, a organizacao em redes digitais, a rejeicao a tutela do Estado e a ocupacao de espacos publicos sao caracteristicas que conectam esses novos movimentos a mobilizacoes variadas (Dellenbaugh et al., 2015; Kip, 2015). Ao evocar um porvir nao capitalista para alem da antinomia moderna Estado versus mercado, propriedade publica versus propriedade privada, a nocao de comum aproxima-se de um campo de praticas mais autonomas e coletivas de producao e reproducao social (De Angelis, 2007; Hardt; Negri, 2009).

    De modo mais restrito, os comuns (ou recursos comuns) podem ser definidos como bens que sao coletivamente usados e geridos por uma dada comunidade por meio do fazer-comum [commoning], isto e, um conjunto de praticas e relacoes de compartilhamento e reciprocidade (Linebaugh, 2014), para alem do ambito do Estado e do mercado e das suas respectivas formas de propriedade, publica e privada. As abordagens teoricas e os estudos historicos e empiricos disponiveis sobre o comum, seja em sua vertente liberal institucionalista, seja nas suas formulacoes mais criticas (2), abarcam majoritariamente tanto os recursos naturais e terras comunais (bens materiais) quanto o comum imaterial, cultural e informacional, em geral passando ao largo da realidade urbana.

    Ao mesmo tempo que a urbanizacao da sociedade se afirma como tendencia irreversivel (Lefebvre, 1999), os teoricos do comum nao se propuseram, salvo raras excecoes, a discutir mais detidamente como seria olhar para a urbanizacao a partir do comum, a fim de interrogar sobre os modos pelos quais sao produzidos e apropriados recursos e espacos comuns na cidade, ou de pensar a propria cidade como comum. As abordagens disponiveis (3) sobre o comum urbano - seja em sua vertente liberal, institucionalista ou mesmo critica - apenas localizam o comum na cidade, sem, entretanto, discutirem o que ha de especificamente urbano no comum. Alem disso, nao articulam a dimensao dos recursos comuns existentes na cidade - hortas comunitarias, ocupacoes por moradia, espacos culturais autogeridos, infraestruturas autoproduzidas etc. - com a ideia da propria cidade como comum, como formulado pelos movimentos que lutam pelo direito a cidade.

    Apesar do silencio teorico, em diferentes cidades ao redor do mundo, a ideia do comum urbano tem sido invocada por movimentos, manifestantes, coletivos, pesquisadores, ativistas e ate por formuladores de politica publica para reivindicar e proteger, contra privatizacoes e cercamentos, um conjunto de recursos e bens urbanos que poderiam ser mais amplamente compartilhados entre os cidadaos. Esses movimentos vem crescentemente olhando para alem do Estado, ou seja, na direcao de formas de cooperacao e de reivindicacao dos recursos urbanos e da propria cidade como comum (Foster, Iaione, 2016). Ademais, praticas e espacos tidos como "pre-modernos", "arcaicos", "populares" e "informais", nas favelas, periferias e outros territorios populares urbanos, comecam a ser reconhecidos pelas suas potencias de comunalidade, compartilhamento e cooperacao.

    Concomitantemente, assistimos a difusao da nocao de direito a cidade, formulada originalmente ainda em 1968 pelo filosofo e sociologo marxista frances Henri Lefebvre (1901-1991), e hoje apropriada e difundida - outros diriam banalizada - por um amplo espectro de sujeitos politicos: de movimentos urbanos radicais a entidades internacionais, como o Banco Mundial e a UN-Habitat. A existencia de uma Carta Mundial pelo Direito a Cidade, elaborada entre 2004 e 2005 ao longo do Forum Social das Americas, do Forum Social Urbano e do V Forum Social Mundial, atesta a atualidade global da ideia (4).

    Para fazer frente aos desafios teoricos e conceituais de se conceber o comum em sua dimensao urbana, ensaio aqui uma elaboracao ancorada no pensamento de Henri Lefebvre. Uma abordagem teorica formulada a partir das contribuicoes de Lefebvre em torno da nocao de direito a cidade - passando pelas suas discussoes sobre a critica da vida cotidiana, a revolucao urbana e a producao do espaco - pode oferecer caminhos para se conceber teoricamente o comum urbano como realidade e conceito critico que se iluminam mutuamente. Assim, defendo aqui que podemos afirmar, feitas todas as ressalvas e contextualizacoes historicas necessarias, que existe uma teoria do comum urbano em Lefebvre. Destarte, o objetivo deste texto e explorar tal hipotese, expondo as principais conexoes entre o pensamento de Lefebvre e o comum. Espera-se com isso enriquecer as leituras muitas vezes estanques da obra lefebvriana, cujas conexoes, continuidades e permanencias parecem ser mais presentes que a primeira vista.

    Delineia-se ainda uma aposta: a de que a emergencia nas ultimas decadas do comum contribui para destacar a atualidade do pensamento lefebvriano, e de que tal pensamento tem vigor critico e robustez teorica para aproximar o comum e o urbano, tal qual sugerido por Kip (2015). O dialogo estreito com Lefebvre deve-se nao apenas por ele haver revigorado o pensamento critico, assumidamente marxista, pela investigacao das tematicas do cotidiano e do espaco, alcadas a um novo patamar de formulacao teorica; mas tambem pela sua recusa ao socialismo real de Estado e a sua degenerescencia autoritaria e burocratica (5). A utopia concreta e experimental defendida por Lefebvre passa pela autogestao generalizada e por um sentido revolucionario de cidadania calcado na vida cotidiana desalienada, liberta do capital e do Estado, tal qual em muitas das formulacoes mais criticas sobre o comum.

    Assim, o artigo esta dividido em cinco secoes, afora esta introducao e as conclusoes. Na primeira, abordo a vida cotidiana como ambito de producao do comum. Na segunda, exploro como as ideias de apropriacao, uso e autogestao podem constituir uma pratica espacial de fazer-comum. Adiante, na terceira secao, discuto a cidade como obra coletiva e o direito a cidade como direito ao comum urbano. Na quarta secao, investigo como o urbano, caracterizado pelo carater de centralidade, diferenca e mediacao, acrescido da promessa emancipatoria da cidade, pode ser entendido como espaco contraditorio de cercamento e producao do comum. Por fim, na quinta secao, discuto como a producao do espaco tornou-se central a reproducao das relacoes sociais capitalistas (incluso da propriedade privada), implicando cada vez mais a luta pela apropriacao do proprio espaco (urbano) como comum, e as lutas pelo direito a cidade como lutas pela cidade como comum.

  2. Critica da vida cotidiana: entre a alienacao e o comum

    Segundo Martins (2016, p. 14), Lefebvre questionou se, [...] "diante das contradicoes do espaco e de sua centralidade para a reproducao capitalista da riqueza, nao seria necessario ao pensamento teorico destrocar a unidade de producao, a industria propriamente dita, como base da analise e fundamento da reproducao das relacoes sociais de producao". Lefebvre descobrira que a industria deixava de ser o lugar central de formacao da riqueza, do mais-valor, e do proprio modo de producao como totalidade: a re-producao das relacoes sociais de producao passara a se dar pela e na cotidianidade, na urbanizacao, e na propria producao do espaco. Esse deslocamento do mundo industrial da fabrica - outrora entendido como locus essencial da reproducao capitalista e da luta politica - para o espaco urbano estendido, para a propria producao do espaco planetario, revelou-se na emergencia dos movimentos sociais urbanos e das questoes ligadas mais diretamente a reproducao do que a producao, tais como os problemas da vida cotidiana, o meio-ambiente, a preservacao dos valores de uso contra a extensao do mundo da mercadoria e da logica industrial etc. (Monte-Mor, 2006).

    Martins (2016) aponta que o conhecimento da producao do espaco, tal qual proposto por Lefebvre, torna imprescindivel o conhecimento da vida cotidiana, na qual [...] "se situa o nucleo racional, o centro real da praxis". Assim, a Critica da vida cotidiana pode ser lida como a espinha dorsal de sua extensa obra: ao tema, o autor dedicou uma volumosa trilogia (2014 [1947; 1961; 1981]), dentre outros escritos. A vida cotidiana nao e, pois, tao somente o ponto de partida para suas investigacoes sobre as contradicoes do mundo moderno, mas tambem o lugar de critica e transformacao deste mundo.

    Observando as transformacoes sofridas pelo capitalismo fordista no pos-guerra, Lefebvre notou a ascensao da sociedade burocratica de consumo dirigido, na qual a vida cotidiana encontra-se subsumida ao capital e a burocracia estatal. Nela, o tempo de nao-trabalho subordina-se ao modo de producao, programando o cotidiano como esfera de consumo de novas mercadorias: o lazer, as ferias, o turismo, a cultura transformada em industria etc. Lefebvre (2014) sugere que, nesse periodo, a colonizacao desloca-se do colonialismo externo (imperialismo) para uma especie de colonialismo interno do proprio espaco e da vida cotidiana, cujo resultado e a alienacao generalizada, a expropriacao do corpo e do vivido. De modo semelhante, Negri (2016) considerou que, sob o capitalismo biopolitico contemporaneo, completa-se a a subsuncao real da vida ao capital, levando a indistincao entre tempo de trabalho e de vida e ao extravasamento...

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