Do casamento homoafetivo

AutorPaulo Hermano Soares Ribeiro - Edson Pires da Fonseca
Ocupação do AutorProfessor de Direito Civil das Faculdades Pitágoras de Montes Claros, MG e da FADISA - MG. Tabelião de Notas. Advogado licenciado. - Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito na FADISA e na FAVAG - MG
Páginas75-89

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O casamento guarda contornos morais e culturais que o definiu, ao longo do tempo, estritamente como a união de pessoas de sexos diferentes, caráter corroborado, principalmente, pelo desiderato de procriação e perpetuação da espécie. Na concepção religiosa, o casamento que não incorporasse homem e mulher seria obsceno, imoral e pecaminoso, devendo ser repudiado pelo cristão.1O discurso religioso ganhou a adesão da maioria heterossexual e foi absorvido pelo legislador2 e pelo juiz3de forma tão contundente que ambos, historicamente, condenaram as uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Até mesmo a ciência médica, eventualmente subjugada pela ética religiosa, sugeriu por longo tempo que a homossexualidade fosse uma patologia, daí utilizar o sufixo "ismo" que denota condição patológica,

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e se referir ao relacionamento entre pessoas do mesmo sexo como homossexualismo. Somente na décima revisão da Classificação Inter-nacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), da Organização Mundial de Saúde, houve exclusão do homossexualismo como doença.4Apesar do histórico discurso recriminador, amparado pela religião e pela ciência, sempre foi inegável a existência de relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo, cuja densidade exorbita o amor fraternal ou paternal. Trata-se de amor físico, devoção e comprometimento de semelhantes, poderoso e real embora não ousasse dizer seu nome (Oscar Wilde).

Sua invisibilidade no sistema jurídico positivado apontava (e no Brasil ainda aponta) para uma cegueira de conveniência, sem jamais comprometer-lhe a existência e o significado.

O modelo heterossexual, como todo padrão absoluto, prescreve a violência da uniformização de comportamento entre todas as pessoas, relega à marginalidade minorias divergentes e edifica muros de intolerância e desrespeito à diferença. Eventualmente serve de justificativa infame a tratamentos indignos, inferiorização e seleção de pessoas.

A tragédia da exclusão se mostra na resposta social favorecida pelo ambiente inóspito: "ao terem sua sexualidade desacreditada, os homossexuais estão sujeitos à vergonha, molestação, discriminação e violência, enquanto lhes são negados direitos legais e proteção igual - todas negações fundamentais de reconhecimento."5

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Essa realidade vigorou na cultura dominante até um passado muito recente.

Contudo, na dinâmica da natureza humana as certezas estão sempre caminhando para o poente, evidenciando a característica (perenemente) em construção da cultura. Novos despertares surgem da fadiga e entropia de modelos que descobrimos incompletos ou inadequados.

A média da cultura assimilada pelo Constituinte de 1988 produziu um texto constitucional repleto de inclusões no que se refere à família, principalmente. Do monopólio do casamento como conceito de família, por exemplo, passamos aos arranjos familiares plurais e multi-facetados. Ainda assim, obviamente, tampouco a Constituição de 1988 está completa e acabada: "todas as gerações posteriores enfrentarão a tarefa de atualizar a substância normativa inesgotável do sistema de direitos estatuído no documento da constituição"6. E, mais

O ato da fundação da constituição é sentido como um corte na história nacional, e isso não é resultado de um mero acaso, pois, através dele, se fundamentou novo tipo de prática com significado para a história mun-dial. E o sentido performativo desta prática destinada a produzir uma comunidade política de cidadãos livres e iguais, que se determinam a si mesmos, foi apenas enunciado no teor da constituição. Ele continua dependente de uma explicação reiterada, no decorrer das posteriores aplicações, interpretações e complementações das normas constitucionais.7O próprio conceito de família, que perdeu coincidência exclusiva com o casamento, tornou-se indeterminado para permitir seu preen-chimento ulterior com valores e aspirações presentes em diferentes momentos históricos. E tal preenchimento, diga-se, autoriza que se leve em consideração a época, o paradigma presente, a perspectiva do intérprete, os atores e as forças que atuam, o que definirá tanto a interpretação quanto a base dela. Desgarra-se, portanto, da mens legislatori contemporânea da promulgação, pensada eventualmente em sentido diverso.

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Recentemente, ao julgar a "Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277? e a "Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132?, o Supremo Tribunal Federal (STF), aplicando a técnica da interpretação conforme a Constituição excluiu qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, conforme a ementa seguinte:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir "interpretação conforme à Constituição" ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTO-NOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de "promover o bem de todos". Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana "norma geral negativa", segundo a qual "o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido". Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da "dignidade da pessoa humana": direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da

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vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO "FAMÍLIA" NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informal-mente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão "família", não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por "intimidade e vida privada" (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E...

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