Estado do Bem-Estar Social e desfiliação social

AutorAlair Suzeti Silveira
CargoProfessora efetiva do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá - Brasil
Páginas145-176
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 12 - Nº 23 - Jan./Abr. de 2013
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Estado do Bem-Estar Social
e desf‌iliação social
Alair Suzeti da Silveira1
Resumo
A partir dos anos 80, o mundo vem passando por mudanças signif‌icativas que não apenas sacra-
lizam o mercado e satanizam o Estado, mas produzem um coletivo de desf‌iliados sociais, como
qualif‌icou Robert Castel. Mais do que trabalhadores sem emprego ou perspectivas de consegui-lo,
trata-se de homens e mulheres “esquecidos” à margem da sociedade, como desvalidos sociais
sem lugar e sem garantias cidadãs frente a um Estado cada vez mais hermético às suas respon-
sabilidades sociais. O objetivo deste ensaio é, pois, ref‌letir sobre a dinâmica das relações sociais
de produção capitalistas e os custos sociais de um exército de esquecidos, imersos na vulnerabi-
lidade e provisoriedade das relações cotidianas, marcadas pela hegemonia do neoliberalismo, da
cultura pós-moderna e das restrições à política como prática coletiva orgânica. O desaf‌io, neste
cenário, é recuperar formas de coesão e solidariedade societal e o Estado socialmente responsável.
Palavras-chave: Estado de Bem-Estar Social. Sociedade do trabalho. Desf‌iliação social. Solida-
riedade coletiva.
1. Introdução
As transformações no modelo produtivo que ganharam o mundo, prin-
cipalmente a partir dos anos 70, produziram mais do que a substituição ou o
hibridismo2 com relação ao modelo anterior. A profundidade das mudanças
trazidas pelo modelo japonês – combinado com outros movimentos de igual
1 Professora efetiva do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso,
Cuiabá, Brasil, é mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
Brasil. É autora de artigos publicados nas revistas Universidade e Sociedade (Brasília, 2009), Revista de So-
ciologia e Política (UFPR, 2009) (Impresso), Revista Jurídica da UniRondon(2001), entre outras. É autora de
obras como Sociologia jurídica – A percepção social dos direitos: instrumento legal ou de justiça social? (Juruá
Editora, 2004) e A concepção e a prática democrática nas distintas classes de Cuiabá (Editora Defanti, 2000).
E-mail: alairsilveira@ufmt.br.
2 Helena Hirata e outros autores compreendem que o modelo japonês, em alguns países, é assimilado de forma
híbrida, preservando elementos do modelo fordista/taylorista.
http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2013v12n24p145
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impacto, como a cultura pós-moderna, a globalização econômica e o ideário
neoliberal – provocou, para além da reestruturação produtiva, o aprofunda-
mento do desemprego, do incremento da terceirização, da precarização das
relações de trabalho, do crescimento da informalidade laboral e da fragilização
das entidades sindicais. Além disso, trouxe também um processo de “desiden-
tidade” social, ou de desliação, como dene Robert Castel (2005).
A profundidade dessas transformações é ainda maior quando dimensio-
nada frente ao encolhimento das responsabilidades sociais3 do Estado e da
chamada “privatização da cidadania4 (DUPAS, 2005). Consequentemente,
aqueles denominados “supranumerários” (CASTEL, 2005) acabam não só
privados do acesso ao trabalho como tornam-se as principais vítimas desse en-
colhimento estatal quanto às garantias cidadãs que o Estado de Bem-Estar So-
cial – especialmente europeu – incorporou durante o período de seu apogeu.
Diante do impacto social, político e econômico dessas transformações,
muitas têm sido as tentativas de compreendê-las, dimensioná-las e superá-las.
Nessa perspectiva, no início dos anos 2000, John Holloway provocou algumas
reexões a partir da propositura de uma mudança civilizatória que não se estru-
turava sobre a tomada do poder estatal (seja de viés reformista ou revolucioná-
rio), nem na reprodução, invertida, das relações cindidas entre quem elabora
e manda fazer, e aos fazedores. Separação essa que, no capitalismo, segundo o
autor, “se converte no único eixo de dominação” (HOLLOWAY, 2003, p. 52).
Trata-se de uma proposta que é, nos marcos das relações dominantes,
uma forma de antipoder5, que “corresponde a um debilitamento do processo
que centrou o descontentamento no Estado” (HOLLOWAY, 2003, p. 37).
3 A redução das responsabilidades sociais do Estado de Bem-Estar Social engloba desde a redução dos inves-
timentos destinados à educação e à saúde, com sua consequente privatização ou “concorrência” com a ini-
ciativa privada; a aplicação de políticas focalizadas, destinadas às parcelas mais vulneráveis da sociedade;
e mesmo a imposição de regras que retiram do trabalhador – amparado pelo seguro social – o direito de
“escolha” sobre as condições de salário e trabalho, na medida em que a recusa implica em perda do benefício.
4 De acordo com Dupas (2005, p. 177), a privatização da cidadania é produzida pela “crescente inf‌luência das
lógicas organizacionais e das redes, onde o processo de dessimbolização do mundo passa a ter o economi-
cismo e o tecnocratismo como referências centrais. [...] A crise da civilidade e a intensif‌icação do narcisismo
levam, assim, a uma emancipação do indivíduo de todo enquadramento normativo, a uma aversão à esfera
pública e a sua consequente degradação”.
5 “A luta para libertar o poder-fazer não é a luta para construir um contra-poder, mas na realidade um antipo-
der, algo completamente diferente do poder-sobre. [...] O antipoder, então, não é um contra-poder, mas algo
muito mais radical: é a dissolução do poder-sobre, a emancipação do poder-fazer. [...] A tentativa de exercer o
poder-fazer de uma maneira que não implique o exercício do poder sobre os outros inevitavelmente entra em
conf‌lito com o poder-sobre” (HOLLOWAY, 2003, p. 61).
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Mais do que uma crítica às formatações estatais, a proposta de Holloway
retoma os pressupostos anarquistas e, em certa medida, marxistas segundo
os quais o Estado compõe uma engrenagem estrutural. Nessa perspectiva, a
emancipação social passa pela superação do próprio Estado e não pela simples
tomada do poder, com a ilusão de transformá-lo em instituição a serviço de
ideais emancipatórios. Como sintetiza o autor:
O fato de o trabalho estar organizado sobre uma base capitalista signif‌ica que o que o
Estado faz e pode fazer está limitado e condicionado pela necessidade de manter o sistema
de organização capitalista do qual é parte. Isso signif‌ica concretamente que qualquer go-
verno que realize uma ação signif‌icativa dirigida contra os interesses do capital terá como
resultado uma crise econômica e a fuga do capital do território estatal (HOLLOWAY, 2003,
p. 26-27).
A questão, entretanto, é que a superação do Estado é um propósito que
não encontra substrato prático, na medida em que a complexidade societal e
os processos de “invalidação”6 social demandam não a sua destruição, mas, ao
contrário, sua reformulação sob a perspectiva da cidadania e da responsabili-
dade social.
Anal, à medida que a sociedade se complexica e as inovações tecnológi-
cas se expandem, como combiná-las sem transformar o mundo em um espaço
de extremos que reetem reclusos e excluídos e cujo tecido social tem frágil
espessura coesiva? Ou, como perspicazmente perguntou Castel: “Qual é o
limiar de tolerância de uma sociedade democrática para [tolerar a] invalidação
social?” (CASTEL, 2005, p. 34).
Esse é, portanto, o problema central que permeia este pequeno ensaio, não
como uma tentativa de universalização da experiência europeia Pós-Guerra,
mas de reexão sobre a dinâmica das relações sociais de produção capitalistas.
Relações que podem expressar formas nacionais mais ou menos solidárias de
cidadania e abrangência estatal, mas que no fundo guardam semelhanças nada
secundárias quanto aos custos sociais dessa dinâmica, cuja face mais terrível é,
justamente, o processo de invalidação social que atinge número nada despre-
zível de pessoas.
6 Termo utilizado por Robert Castel (2005) para caracterizar o processo de desf‌iliação social, que representa a
imersão dos integrados no mundo dos desf‌iliados, que perdem suas referências de pertencimento social.

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