Incidência do art. 927, Parágrafo único, do Código Civil nas relações de trabalho

AutorKarina Novah Salomão
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade de São Paulo
Páginas173-196

Page 173

1. Análise dos argumentos favoráveis à incidência do parágrafo único do art 927 do código civil às relações de trabalho

Não obstante as objeções, muitos autores defendem a aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil às relações de trabalho. Os argumentos favoráveis são os seguintes: a) a Constituição previu outros direitos no caput, art. 7º, a significar que a lei ordinária poderia prever outros direitos — mais vantajosos, inclusive —, além daqueles previstos nos incisos do art. 7º. Chega-se a sustentar que o art. 7º criou norma em benefício do empregado e não do empregador, razão pela qual deve ter uma interpretação favorável àquele e não a este; b) o parágrafo único do art. 927 do CC deve ser aplicado igualmente ao cidadão e aos empregados. Se prevalecer a interpretação de que o art. 927 é inaplicável às relações de trabalho, chegaremos a um paradoxo, qual seja, o de que, em decorrência de vazamento de energia nuclear, cidadãos comuns poderiam reclamar indenização sem necessidade de provar a culpa do empresário (com fundamento no parágrafo único do art. 927 do CC) e os empregados, pelo mesmo fato, teriam que provar a culpa do empregador, para reclamar indenização; c) a aplicação da teoria objetiva justifica-se, quando o risco ultrapassa a normalidade; d) o inciso XXVIII do art. da CF deve ser entendido em consonância com o § 3º do art. 225 da mesma Carta, ou seja, não é possível que o constituinte tenha conferido uma proteção maior ao meio ambiente que ao ser humano; e) a Carta de 1988 e o Código Civil de 2002 valorizam a pessoa humana, a dignidade do ser humano, princípio basilar da nossa Constituição; f) também a solidariedade, o valor social do trabalho, o dever de garantir a segurança do trabalhador fundamentam a aplicação do parágrafo único do art. 927 do CC.

Page 174

Na sequência, analisamos cada um desses argumentos.

Parece-nos que o argumento de que a Constituição previu outros direitos além daqueles contemplados no inciso 7º tem primazia sobre os demais. Interpretação sistemática e teleológica do art. 7º, caput e XXVIII, da Constituição Federal, permite concluir que o rol de direitos dos trabalhadores ali enumerados não é taxativo. Nossos Tribunais têm entendido que o art. 7º da Constituição, em seus incisos VI, XIII e XIV, prevê a possibilidade da prevalência de normas infraconstitucionais em face de normas constitucionais. Assim, é possível ao legislador ordinário instituir outros direitos aos trabalhadores, desde que esses importem em melhoria de sua condição social. Importa sublinhar que o art. 7º criou uma teia de proteção social para o trabalhador, e não em prol do empregador. Nessa medida, não cabe interpretação literal do art. 7º, XXVIII. O inciso XXVIII do art. da Carta Magna assegura um direito mínimo do trabalhador à indenização por acidente de trabalho, no caso de dolo ou culpa. Norma ordinária pode prever a responsabilidade objetiva do empregador, nos casos em que especifica. Segundo o disposto no parágrafo único do art. 927 do Código Civil, que adotou a teoria do risco, o dever de indenizar decorre da própria atividade profissional, em caso de risco acentuado ou excepcional, pela natureza perigosa. Nessas hipóteses, incide a responsabilidade objetiva.

À primeira vista, o descumprimento das regras de proteção ao trabalhador enseja a responsabilidade civil do empregador — de caráter subjetivo — e dá lugar às prestações da Previdência Social, pois o art. 7º, XXVIII, da Constituição fala em seguro contra acidente do trabalho sem excluir indenização, quando o empregador incorrer em dolo ou culpa. O art. 7º, XXVIII, entretanto, não pode ser entendido sem o caput, que fala em outros direitos, e nem sem o art. 1º da Constituição, que estabelece como um dos princípios do Estado de Direito o valor social do trabalho, relacionando esse direito às garantias sociais, tais como o direito à saúde, à segurança, à previdência social e ao trabalho.

Assim se pronuncia Anna Cândida Cunha Ferraz:

A Constituição não esgota, por sua própria natureza e índole, o conteúdo que cristaliza em suas normas. Não podendo regular, em minúcias e pormenores, toda a matéria constitucional, mas limitando-se a determinar, em maior ou menor grau, as características dos atos que a aplicam, exige e impõe, de modo expresso ou implícito, atividade do legislador infraconstitucional para sua concreta aplicação.569

Page 175

Consoante esse entendimento, pode o intérprete dar um sentido mais amplo ou mais restrito ao texto constitucional.

Atentos a essas questões, os operadores do Direito reunidos na 1ª Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho, promovida pelo Tribunal Superior do Trabalho, pela Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho — ANAMATRA —, pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho — ENAMAT —, realizada de setembro a novembro de 2007, aprovaram o Enunciado n. 37, de seguinte teor:

Responsabilidade objetiva no acidente de trabalho. Atividade de risco. Aplica-se o art. 927, parágrafo único do Código Civil nos acidentes do trabalho. O art. 7º, XXVIII, da Constituição da República, não constitui óbice à aplicação desse dispositivo legal, visto que seu caput garante a inclusão de outros direitos que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores.570

Os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores previstos no art. 7º da Constituição Federal representam um conjunto básico de garantias e objetivam a concretização da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Por sua vez, a ordem econômica deve ser “[...] fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, assegurando a todos uma “[...] existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170 da Constituição). O art. 7º, XXVIII, da Constituição, não pode ser interpretado isoladamente. A responsabilidade subjetiva ali prevista não exclui outros direitos que visem à melhoria da condição social do trabalhador (caput do art. 7º). Assim, as normas infraconstitucionais podem prever outros direitos mais favoráveis aos trabalhadores.

Entendemos aplicável aos trabalhadores a teoria do risco, acolhida no parágrafo único do art. 927 do Código Civil. O inciso XXVIII do art. da Constituição Federal deve ser interpretado em consonância com o caput do mesmo artigo, que dispõe que “[...] são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria da sua condição social [...]”. É aplicável, aqui, o princípio da efetividade, segundo o qual deve ser atribuído à norma constitucional o sentido que lhe dê maior eficácia.

Outrossim, concordamos que o trabalhador não pode ter uma proteção menor que aquela assegurada ao cidadão comum, no caso de um desastre ecológico ou de um acidente. A Constituição deve ser interpretada de modo harmônico.

Page 176

A legislação de responsabilidade civil de cada país corresponde aos avanços das relações sociais. Não se pode admitir um sistema incapaz de legislar sobre tais relações, materializando direitos fundamentais e garantias assegurados na Constituição. O legislador, ao redigir o parágrafo único do art. 927 do Código Civil, atentou para o desenvolvimento industrial, que trouxe avanços tecnológicos, mas também para o aumento no número de acidentes, a disparidade econômica entre o cidadão e a empresa que desenvolve atividade de risco, a hipossuficiência da vítima, bem como dificuldade desta em fazer provas da culpa ou dolo do autor do dano. No caso de atividades de risco, por mais que o empresário busque prevenir acidentes, esses são inevitáveis e, quando causados, podem gerar danos de grande dimensão (é o caso, por exemplo, do acidente nuclear de Chernobyl). Compete ao Estado Demo-crático de Direito promover o bem-estar de todos. A norma contida no parágrafo único do art. 927 do Código Civil constitui grande avanço nesse passo. É inegável, contudo, que se nas relações de consumo se verifica a hipossuficiência de uma das partes, com muito maior razão essa se verifica nas relações de trabalho. Daí por que defendemos um tratamento igualitário entre cidadãos comuns e trabalhadores, no que tange à aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil.

Os trabalhadores estão inseridos na cadeia produtiva, entre o empregador e os consumidores, sendo responsáveis pela produção de materiais ou concretização de serviços, além da mais-valia. Os produtos que serão adquiridos pelo consumidor são os mesmos manipulados pelos trabalhadores, aplicando-se-lhes, portanto, as mesmas regras de responsabilidade civil, nos casos de atividade de risco. Não se pode tratar o trabalhador como coisa, contrariando o princípio constitucional da dignidade do ser humano, que irradia por todo o ordenamento jurídico.

Outro argumento invocado para a aplicação do parágrafo único do art. 927 do Código Civil às relações de trabalho é o de que o § 3º do art. 225 da Constituição Federal assegurou a responsabilidade objetiva pelos danos causados ao meio ambiente, incluído o meio ambiente do trabalho, por força do art. 200, VIII. Surge uma aparente antinomia, vez que o § 3º, art. 225, da Constituição assegura uma responsabilidade objetiva, enquanto o inciso XXVIII do art. 7º prevê a responsabilidade subjetiva do empregador571.

Page 177

No plano infraconstitucional, o § 1º do art. 14 da Lei n. 6.938/81 dispõe que “[...] é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade”.

E, de acordo com a Lei n. 6.938/81...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT