Do abuso do governo e da sua tendência a se degenerar

AutorJean-Jacques Rousseau
Páginas143-147

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Assim como a vontade particular atua incessantemente contra a vontade geral, também o governo faz um contínuo esforço contra a soberania. Quanto mais aumenta esse esforço, mais se modifica a constituição, e como não há aí outra vontade do corpo que, resistindo à do príncipe, mantenha equilíbrio com ela, cedo ou tarde acontecerá que o príncipe oprima enfim a soberania e rompa com o tratado social. Há nisso um vício inerente e inevitável que, desde o nascimento do corpo político, procura, sem descanso, destruí-lo, assim como a velhice e a morte destroem o corpo do homem.

Há dois caminhos gerais pelos quais um governo se degenera, a saber: quando se concentra, ou quando o Estado se dissolve.

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O governo se concentra quando passa do grande número ao pequeno, isto é, da democracia à aristocracia, e da aristocracia à realeza. É seu pendor natural7. Se ele re-

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trocedesse do pequeno número para o grande, poder-se-ia dizer que ele se debilita, mas é impossível essa progressão inversa.

Com efeito, jamais o governo muda de forma a não ser quando sua alçada o deixa muito enfraquecido para conservar a que lhe é própria. Ora, se ele se debilita ao estender-se, sua força tornar-se-ia inteiramente nula, e subsistiria ainda menos. É preciso, pois, remontar e apertar a mola à medida que cede, de outro modo cairá em ruína o Estado que ela sustenta.

A dissolução do Estado pode acontecer de duas maneiras.

Primeiramente, quando o príncipe não mais administra o Estado de acordo com as leis e usurpa o poder soberano. Faz-se então uma notável mudança; não o governo, mas o Estado é que se concentra; quero significar que o Estado grande se dissolve, resultando dele um outro, composto unicamente de membros do governo, e não é

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mais para o resto do povo do que seu senhor e tirano. De maneira que, no momento em que o governo usurpa a soberania, rompe-se o pacto social, e todos os simples cidadãos, reingressando por direito à sua liberdade natural, são forçados mas não obrigados a obedecer.

O mesmo também acontece quando os membros do governo usurpam, separadamente, o poder que só devem exercer em conjunto; o que não constitui menor infração das leis e produz ainda uma desordem maior. Tem-se, então, por assim dizer, tantos príncipes quantos magistrados, e o Estado, não estando menos dividido do que o governo, perece ou muda de forma.

Quando o Estado se dissolve, qualquer que seja o abuso do governo toma o nome comum de “anarquia”...

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