O divórcio no direito romano: algumas referências à sua evolução histórica e ao direito português

AutorAntônio dos Santos Justo
Páginas281-320
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Revista Direito e Desenvolvimento a. 3, n. 5, janeiro/junho 2012
O DIVÓRCIO NO DIREITO ROMANO:
ALGUMAS REFERÊNCIAS À SUA EVOLUÇÃO
HISTÓRICA E AO DIREITO PORTUGUÊS*
A. Santos Justo
Apresentação: Este texto serviu de apoio à conferência que foi
proferida no dia 8 de Setembro de 2011, no Centro Universitário de
João Pessoa (UNIPÊ). Referido evento celebrou o Convênio de
Colaboração entre a Universidade de Coimbra e o Centro Universitário
de João Pessoa (UNIPÊ)
Presentation: This text was used as base to the conference that was
pronounced on September 8, 2011, at Centro Universitário de João
Pessoa (UNIPÊ). The referred event celebrated the Agreement of
Colaboration between the Coimbra University and Centro Universitário
de João Pessoa (UNIPÊ).
I DIREITO ROMANO
1 Antelóquio
Não se ignora que procurar a origem de qualquer figura jurídica
para depois estudarmos a sua evolução até aos nossos dias é peregrinar
pela longa noite do tempo, sem fontes que nos ofereçam a indispensável
base sólida. Exactamente por isso, tem-se afirmado que devemos
preferir a ars ignorandi a tentativas de avançar com simples hipóteses
que, sendo insusceptíveis de confirmação, estão inevitavelmente
condenadas ao insucesso.
Se estas dificuldades são comuns aos historiadores, o cultor
do direito romano tropeça com outra: a suspeita de que diversas fontes
estão alteradas, sem saber por quem e quando. E ainda mais graves
são as divergências sobre a existência e o alcance das interpolações,
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* Este texto serviu de apoio à conferência que foi proferida no dia 8 de Setembro
de 2011, no Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
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problema que contribuiu decisivamente para o descrédito da ciência
romanística e do próprio direito romano1. O romanista é, hoje, um
jurista isolado que os cultores de outras ciências jurídicas não
compreendem, porque há muito deixou de falar a mesma linguagem2.
Já no século XIX, Koschaker diagnosticou este drama e,
perante opiniões tão radicalmente opostas sobre as interpolações,
propôs o regresso a Savigny, ou seja, ao estudo do direito romano
justinianeu seguindo o método pandectístico3. Todavia, a crise tem-se
agravado e, por isso, vimos defendendo que o estudo do direito romano
deve centrar-se na época justinianeia sem, no entanto, olvidarmos as
épocas anteriores sempre que a sua presença se considere indispensável,
como ocorre no presente estudo.
Finalmente, importa referir que, seguindo o critério jurídico
interno, ocupar-nos-emos do divórcio sucessivamente nas épocas
arcaica, clássica, pós-clássica e justinianeia. E terminaremos com breves
referências à Idade Média, à Idade Moderna, à Idade Contemporânea
e ao Direito Português.
2 Época arcaica
2.1 Tempos mais antigos
Nos primeiros séculos da época arcaica4, as fontes são escassas
e não oferecem uma informação precisa sobre o regime jurídico do
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Nas palavras de Lucien CAES, “Niente di più facile, ma nello stesso tempo di
meno scientifico, che il dichiarare autentico o rimaneggiato un testo senza
essersi inanzi tutto assicurati del valore della sua tradizione manoscritta.
E potrebbe deplorarsi che una precauzione così elementare sia troppo spesso
trascurata dagli interpolazionisti”. Vide Lucien CAES, A propósito del
fragmento Vaticano 116 em SDHI V (1939) 132.
2 Vide A. Santos JUSTO, A crise da romanística no BFDUC LXXII (1996) 42-44.
3 Vide Sebastião CRUZ, Direito romano.(ius romanum). I. Introdução. Fontes4
(Ed. do Autor / Coimbra, 1984) 107-108.
4 Esta época começa no ano 753 a.C. (fundação de Roma) e termina no ano 130
a.C., data da famosa lex Aebutia de formulis que legalizou o processo das
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divórcio. Na sua ausência, impôs-se, em relação ao tempo que decorre
entre Rómulo e a Lei das XII Tábuas, a explicação lendária que
observamos fundamentalmente nas obras posteriores de Dionísio de
Halicarnasso e de Tito Lívio5. Todavia, como facilmente se reconhece,
é extremamente difícil separar a pura lenda da realidade histórica.
Lendária é, v.g., a referência de Plutarco a uma lei de Rómulo
que teria reconhecido quatro casos de repúdio da mulher pelo marido:
tentativa de envenenamento, utilização de chaves falsas, simulação de
parto e adultério. Fora destas causas, o marido que repudiasse a sua
mulher devia entregar-lhe metade dos bens e consagrar a outra metade
à deusa Ceres. Ademais, era devotado aos deuses infernais6. Embora
não passe duma lenda, nem por isso a romanística tem deixado de
discutir se as chaves falsas seriam as da casa que a mulher recebia do
marido logo após o matrimónio; ou se eram as chaves da adega onde
se guardava o vinho utilizado nos sacrifícios religiosos7.
E não menos lendária parece a existência de um conselho de
parentes próximos da mulher ou tribunal doméstico (consilium
propinquorum ou iudicium domesticum)8, criado para intervir nas
acusações contra as mulheres. É provável que fosse presidido pelo
paterfamilias, apreciasse as causas e desse a sua opinião que, embora
não soberana, impediria o marido de decidir contrariamente, sob pena
de ser severamente julgado pela opinião pública muito estimada em
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fórmulas (agere per formulas) que contribuiu decisivamente para o progresso
da ciência jurídica romana (iurisprudentia) e, consequentemente, do próprio
direito romano. Vide CRUZ, ibidem 43-45 e 333; e JUSTO, Direito privado
romano – I. Parte geral (Iintrodução. Relação jurídica. Defesa dos direitos)4
em Studia Iuridica 50 (Coimbra Editora / Coimbra, 2008) 18 e A evolução do
direito romano no BFDUC. Volume comemorativo do 75 tomo (Coimbra,
2003) 50-53.
5 Vide Eduardo Ruiz FERNANDEZ, El divorcio en Roma (Universidad
Complutense - Facultad de derecho / Madrid, 1992) 26.
6 Cf. PLUTARCO, Rom., 29.
7 Vide Sílvio A. B. MEIRA, A legislação romana do divórcio em Novos e velhos
temas de direito (Forense / Rio de Janeiro, 1973) 13.
8 Cf. Cf. AULO GELIO, 17,21,44; e TITO LIVIO, 3,19.

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