Dividir, definir e classificar: conhecer é recortar o mundo

AutorLucas Galvão de Britto
Páginas215-259
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DIVIDIR, DEFINIR E CLASSIFICAR:
CONHECER É RECORTAR O MUNDO
Lucas Galvão de Britto1
O Direito é uma técnica de esquematizar classes
de condutas para poder dominar racionalmente a
realidade social. Generaliza em esquemas abstra-
tos a vida em sua concreção existencial, para
ofertar a possibilidade de previsão de condutas
típicas, indispensável à coexistência social.”
Lourival Vilanova
1. Introdução
Durante um bom tempo na tradição dos estudos jurídicos
afirmou-se que as definições e classificações pertenciam ao
domínio da ciência. Por isso mesmo, dispositivos como a defi-
nição de tributo posta no art. 3º do Código Tributário Nacional,
a classificação das competências constitucionais em privativas,
concorrentes e comuns eram consideradas excrecências de um
legislador desatento.
1. Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP. Professor dos
cursos de especialização em Direito Tributário do IBET e PUC-SP. Advogado.
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CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO
Volume I
O avanço das investigações lógicas para além do domínio
da alethea, alcançando também as manifestações deônticas,
logo mostrou que, a despeito de alguns ajustes necessários
quanto aos modais e a função desempenhada pelo discurso
jurídico, muitos princípios e categorias lógicas poderiam ser
utilizados com bom proveito para examinar analiticamente o
direito.
O meu propósito neste trabalho é tratar de duas operações
lógicas fundamentais: a definição e a classificação, ilustrando
como o direito vale-se delas para atingir o seu desígnio de
prescrever condutas e implementar valores numa dada socie-
dade. Mais do que simplesmente mostrar as potencialidades
do emprego dessas categorias, pretendo demonstrar como –
quer nos apercebamos disso ou não – o legislador e o estudio-
so necessariamente valem-se dessas operações para conhecer
e ordenar a realidade com a qual lidam.
O leitor mais arguto poderia logo indagar: mas se tais
atividades são necessárias à forma humana de agir e as prati-
camos a todo instante, até mesmo quando não nos damos
conta delas, de que serve estudá-las?
O esforço, como de resto qualquer trabalho sobre episte-
mologia, justifica-se pelo ganho em precisão discursiva que o
conhecimento dessas categorias oferece. Devemos afiar a lâ-
mina do conhecimento sobre a pedra da epistemologia2, pois só
assim poderemos produzir cortes acurados e profundos sobre
o objeto a que dedicamos nossa atenção.
Este, portanto, é um trabalho de epistemologia, encon-
trando assim bom abrigo em meio a um compêndio de textos
que tratam sobre o Constructivismo Lógico-Semântico enquan-
to método de investigação do fenômeno jurídico. Com efeito,
2. ROBLES, Gregorio. Epistemología y Derecho. Madrid: Piramide, 1982,
p.19.
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CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO
Volume I
a preocupação com o emprego preciso das categorias lógicas,
sem, no entanto, descuidar das perspectivas semântica e prag-
mática da linguagem, tem se mantido no centro das atenções
dos autores que lidam com esse método. Dessa maneira, é no
intuito de oferecer algumas reflexões a respeito desses expe-
dientes que entrego à obra o presente escrito.
2. O cindir é desde o início
Começar algo, qualquer coisa que seja, da mais impor-
tante à mais insignificante, significa também romper. É essa a
imagem que Isaac Newton evoca com a primeira de suas céle-
bres leis ao enunciar que “Todo corpo continua em seu estado
de repouso ou de movimento uniforme em uma linha reta, a
menos que seja forçado a mudar aquele estado por forças apli-
cadas sobre ele”.3
Tudo que é novo é, também, ora em maior, ora em menor
medida, uma ruptura. Ainda que se faça tal esforço “apenas
para conhecer” e escrever sobre alguma coisa, sem a preten-
são de interferir sobre ela, o ato de conhecimento não pres-
cinde de uma quebra, uma mudança, como na linha de Rickert:
por meio do ato gnosiológico, cinde-se um descontínuo ho-
mogêneo a partir de um contínuo heterogêneo. Corta-se do
fluxo de acontecimentos que a sensibilidade ininterruptamen-
te nos apresenta certos traços, separando mentalmente al-
guns elementos dessa “realidade” para sobre eles – e somen-
te eles – repousar a atenção (ou seria mais preciso dizer, in-
quietar a atenção).
Ninguém pode com o todo. Dele sempre temos somente
partes. É assim com cada um de nossos sentidos e, também,
3. Para aqueles que prefiram o original, ei-lo: “Corpus omne perseverare in
statu suo quiescendi vel movendi uniformiter in directum, nisi quatenus a
viribus impressis cogitur statum illum mutare”.

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