Responsabilidade por obrigações e dívidas da sociedade empresária na recuperação extrajudicial, na recuperação judicial e na falência

AutorJorge Lobo
Páginas138-145

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I - Direito da economia
  1. O direito comercial, codificado, no começo do século XIX, sob a inspiração das idéias de Grocio, Locke, Rousseau e outros e do direito natural racionalista, que fez do homem titular de direitos pessoais, intangíveis e inalienáveis, primava pelo caráter eminentemente liberal e individualista, alicerçado nos princípios da liberdade (de contratar) e da igualdade (ainda que meramente formal), por isso era considerado um direito especial em relação ao direito civil, parte, portanto, do direito privado, embora com metodologia e técnica próprias, oriundas da aequitas mercatoria.1

  2. Na Europa, a partir do término da I Guerra Mundial, nos Estados Unidos da

    América, com o crash da Bolsa de Nova York, e no Brasil, sob o comando do 1o Governo Militar, contudo, o direito comercial experimentou uma revolucionária transformação, eis que o Estado passou a intervir no funcionamento do mercado, quer como agente da atividade econômica, quer como órgão regulador.

  3. A propósito do assunto, Orlando Gomes, ao discorrer sobre "aspectos do dirigismo econômico" e das "mudanças na estrutura política, na constituição econômica e na experiência jurídica", ensina, com maestria: "Na área econômica, a mudança capital deu-se pela substituição da economia liberal pela economia dirigida. Implicou essa mudança a limitação do conteúdo do princípio básico da constituição econômica: a liberdade de iniciativa. A modificação verificou-se em dois sentidos: (1o) a atividade econômica dos particulares passou a ser limitada, fiscalizada e controlada

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    pelo Estado (intervencionismo estatal); (2o) as pessoas de direito público entregaram-se ao exercício de atividades econômicas e o Estado se tornou empresário".2

  4. Por isso, pode-se dividir o direito comercial em três ciclos ou fases, o da pré-codificação, o da codificação e o da pós-codificação, havendo imperado nos dois primeiros, com ou sem "lei escrita", o princípio da livre iniciativa, e no terceiro o princípio do dirigismo econômico. Daí falar-se, cada vez mais, em publicização do direito comercial,3 que eu prefiro denominar de transformação do direito comercial em direito da Economia.4

  5. A "recuperação judicial da empresa" é um instituto do direito da Economia,5 que se pauta pela idéia de eficácia técnica, e não pela idéia de justiça - o que salta aos olhos quando se examina o tema "responsabilidade por obrigações e dívidas da sociedade empresária na recuperação extrajudicial, na recuperação judicial e na falência", eis que o Estado, no exercício pleno de seu poder de dispor e regular a atividade econômica do particular, em especial das sociedades empresárias em estado de crise, lança mão de normas de política legislativa que visam a atender precipuamente aos interesses sociais, ainda que, por vezes, em detrimento de direitos individuais, inalienáveis e intangíveis.

II - Distinção entre "sociedade" e "empresa" na doutrina e na Lei de Responsabilidade Fiscal
  1. Na doutrina

    1. Em alentado e excelente estudo, Jean Paillusseau,6 no capítulo dedicado às "Dificuldades da Percepção da Empresa",7 após exclamar que "nada é mais descon-certante que falar da empresa",8 afirma que a noção de "empresa está obscurecida e deformada por análises filosóficas, visões ideológicas e discussões políticas"9 -e creio poder acrescentar, com segurança, por dúvidas e controvérsias quanto à sua natureza jurídica.

    2. A propósito desse intrincado e polêmico tema, a doutrina, pátria e alienígena, divide-se, fundamentalmente, em três correntes:10 a subjetivista ou personalista, a objetivista ou materialista e a unitária.11

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    3. Para os subjetivistas a empresa é sujeito de direito, decorrência natural e necessária de sua personificação, titular de direitos, interesses e obrigações próprios, distintos e autônomos dos de seus sócios.

    4. Para os objetivistas a empresa é objeto de direito, pois ela consiste apenas na afetação de certos bens e direitos, de propriedade de uma ou mais pessoas físicas ou jurídicas, a determinada atividade organizada dos fatores de produção, não existindo nem ativa nem passivamente, não respondendo nem por obrigações nem por dívidas, por carecer de personalidade jurídica.

    5. A propósito, na monografia Cessão da Empresa, Jean Paillusseau, Jean-Jac-ques Caussain, Henry Lazarski e Philippe Peymaure doutrinam: "A empresa não tem personalidade moral, ela não é uma pessoa jurídica. A própria noção de empresa não é uma noção jurídica. A empresa pertence ao domínio das realidades econômicas e sociais. A simples observação da empresas demonstra que a empresa é: (1) uma atividade econômica; (2) um conjunto de meios afetados à atividade; (3) uma organização;

      (4) uma comunidade humana organizada;

      (5) um centro de decisão e de poder; (6) um 'acionariado'; (7) um centro de interesses; (8) um objeto de organização jurídica".12

    6. Para os unitaristas há equiparação entre sociedade e empresa.13

  2. Na Lei 11.101/2005

    1. Entre as inúmeras inovações da Lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária (LRF) destaca-se a nítida distinção entre sociedade e empresa, pois, para a LRF: (i) a sociedade é ser; a empresa, atividade produtiva economicamente organizada; (ii) a sociedade é sujeito de direito; a empresa, objeto de direito; (iii) a sociedade é ficção jurídica; a empresa, realidade social; (iv) a sociedade é forma;14 a empresa, conteúdo; (v) a sociedade é instituto jurídico; a empresa, fenômeno econômico; (vi) a sociedade alicerça-se na teoria do contrato plurilateral; a empresa, na teoria da organização;15 (vii) a sociedade é a personificação da empresa; a empresa, a concretude da sociedade.

    2. A distinção entre sociedade e empresa começa no art. 47, o primeiro do Capítulo III da LRF, ao ficar patente que o objeto da ação de recuperação judicial é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor" - rec-tius, da sociedade;16 a finalidade imediata, "permitir a manutenção da fonte produtiva" - rectius, da empresa; e a finalidade mediata, promover a "preservação da empresa e sua função social".

    3. E prossegue no art. 50, quando ora usa a palavra "sociedade", expressa ou implicitamente, conforme se verifica dos incisos II, que regula a "cisão, incorporação e fusão da sociedade", III, que cuida

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    da "alteração do controle societário", e VI, que prevê "aumento do capital social"; ora o vocábulo "empresa", consoante o inciso XIII, que versa sobre o "usufruto da empresa", para se completar no Capítulo V, que disciplina a falência do devedor, em especial na Seção XI, arts. 140 e 141, que contêm a palavra "empresa" três vezes, e, ainda, nos arts. 142, § 1o, e 145, § 2o.

III - Empresa, estabelecimento, filial e unidade produtiva
  1. Na Lei 11.101/2005

  2. No Código Civil e na doutrina B.1) Conceito de "empresa"

  1. A empresa - ensinou Asquini, ao profligar o conceito jurídico unitário de Vivante - é um fenômeno poliédrico com quatro perfis: o subjetivo (a empresa como propulsora da atividade econômica, isto é, a empresa como empresário); o funcional (a empresa como organização produtiva); o patrimonial (a empresa com seu próprio patrimônio, composto por um ou mais estabelecimentos); e o corporativo (a empresa como a união entre o empresário, titular da empresa, e seus colaboradores).17

  2. A LRF, em quatro artigos, calcada no perfil patrimonial da empresa, trata de estabelecimento (art. 50, VII, e art. 140,I e III), filial (art. 60, caput, art. 140, II, e art. 141) e unidade produtiva (art. 60, caput, e art. 140, II).

  3. Da leitura desses artigos e incisos constata-se que, para a LRF, a empresa pode ser: (a) um todo único (arts. 50, XIII, e 141, caput); (b) formada por um ou mais estabelecimentos (art. 140,I); (c) constituída por uma ou mais filiais (arts. 60, caput, 140, II, e 141, caput); e (d) composta por uma ou mais unidades produtivas (arts. 60, caput, e 140, II).

  4. Verifica-se, ademais, que a LRF permite: (a) o usufruto e a alienação da empresa como um todo único...

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