Dissecando o Iluminismo Penal

AutorAntonio Araújo
Páginas85-95

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A clamado “príncipe da paz”, “ministro universal”, Godoy pairou como ditador benigno, além de ter sido mecenas de Goya, que não vinha de linhagem régia ou aristocrática (SERRANO, 1978). E o pintor de Aragó encarnou a pirotecnia, gravidez, gravidade28déspota-esclarecida por modernidade faraônica e Macunaíma (ANDRADE, 2012), sendo-lhe autor intelectual, um signatário, emissário.

[...] [Goya] não faz a crítica, ou a condenação desse projeto, como os românticos o puderam fazer. A partir da dramática experiência vivida, da consciência do corpo, da descrença política, por meio da prática da pintura, da gravura, do desenho, mas, sobretudo, servindo-se da melancolia como ponto crítico, ele vai além: estabelece os limites angustiantes dos poderes da razão e instaura o irracional como universo ilimitado. Devemos, no entanto, partir de um Goya avesso às trevas e sedento de luzes. Esquecemos freqüentemente o quanto ele foi um artista que aderiu às ideias de reforma do mundo surgidas no seu tempo. Suas relações com o Iluminismo foram convictas [...]. Goya acreditou na liberdade, ele acreditou na razão presidindo os destinos do mundo. (COLI, 1996, p. 301)

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Célebre vítima do Santo Ofício, o evangelho ou sermão redentor de Goya profetiza, em afluente jurídico, a haste do sistema latinocriminal moderno: um positivismo inquisitorial de Estado. Frise-se, de garantismo temerário, represado e protraído, desde bens estanques — enraizados, fincados numa liberdade cape-lão-militar29—, tendencialmente constitucionais, decifráveis ou decodificáveis através de mecanicismo e sacerdócio burocráticos de centro-direita.

Roxin (2000, p. 21) enaltece que a “[...] tarefa do Direito Penal foi limitada, como frequentemente se diz hoje, à ‘proteção subsidiária de bens jurídicos’ [...]”. E de onde vem tal ideia?

A doutrina do bem jurídico exala a pneuma iluminista de Goya, o pulso franco-revolucionário e um punho anglo-industrial. Mas aflora, ganha seus contornos mais nítidos a reboque da dialética Feuerbach (1804-1872) «» Birnbaum (1792-1877), na primeira metade do século XIX (cf. BUSATO e HUAPAYA, 2007; ZAFFARONI, 1989; BARATTA, 1994).

Feuerbach defende, tensiona um hipercontratualismo positivista: “[...] tudo se esgotava no jurídico, não havia nada mais do que isso (tudo surgia do ato formal do contrato), com o qual, se o Estado era o Direito (contrato), não havia outra possibilidade de limitá-lo que sua própria vontade” (BUSTOS RAMÍREZ, 1989, p. 46). A rigor, portanto, crime é lesão a direito-dever subjetivo de seus atores, disciplinados estatalmente. E a liberdade seria o direito-dever síntese.

Por um enfrentamento, antagonismo e contrapositivismo naturalistas, Birnbaum (1834) se opôs à tese feuerbachiana, invertendo-a. Ele acre-ditava que delito algum lastima ou lesiona direitos, em si ilimitáveis, mas seu objeto, bem jurídico, o qual, ou nato (ontológico) ou adquirido (social), pertence-nos juridicamente. Logo, os bens se encontram além do fenômeno jurídico-estatal, que não os cria, só preserva. Uma guinada e tanto, giro dissonante e brusco de 180º.

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Em verdade, o binômio Feuerbach «» Birnbaum ilustra o rebote, discórdia, rixa, emulação, tensão positivismo «» contrapositivismo (jusnaturalismo). Esse duelo de titãs comprimiu, reduziu, afetou, compactou, sitiou as diferentes concepções sobre bem jurídico a uma gradação e grandeza pendulares, bifásicas, unidimensionais, infinitesimais; à pequena finitude ou vastidão linear da geometria penal-euclidiana.

A polarização magnética ou cabo de guerra Feuerbach-Birnbaum congrega, reúne documentado vestígio empírico de que a tecnociência moderna não segue, precípua e heuristicamente, uma evolução gradual, por aproximações ou cognição progressiva, paulatina. Reproduz o estigma e chakra30revolucionários do Iluminismo. Kuhn (1997, p. 27) dirá: “A competição entre segmentos da comunidade científica é o único processo histó-rico que realmente resulta na rejeição de uma teoria ou na adoção de outra”.

Apóstolo, maître da obediência, Binding se filia ao positivismo de Feuerbach, supondo o bem jurídico como “[...] estado valorado pelo legislador”. Ou seja, norma e bem integram unidade-dual. Tanto que lesionar um bem implica, automaticamente, em desobediência à norma do Estado. Binding reconfigura a visão feuerbachiana e substitui a liberdade pela obediência, qual direito-dever nuclear.

Já para von Liszt (1927, p. 11), “[...] todos os bens jurídicos são interesses vitais, interesses do indivíduo ou comunitários”. Ele nada faz senão recuperar, com alguma originalidade, a perspectiva de Birnbaum. Ao fazê-lo, diz que os bens, cujo locus é a vida, ultrapassam o Direito. E, quando identificados, elevam-se à condição de bens jurídicos via norma estatal. Mas o que há de novo, relativamente a Birnbaum? Ora, von Liszt ajusta, remaneja a identificação dos bens jurídicos do Direito à Política Criminal, sem, no entanto, estabelecer-lhe um método, ou mesmo desenvolver seu conceito de “interesses vitais”.

De volta ao positivismo, à sombra neokantiana, sobreveio e ganhou corpo uma pretensão de ruptura quanto à norma. Equipara-se o bem não ao leitmotiv material do injusto, e sim à ratio legis criminal, a um fator te-

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leológico-interpretativo dos tipos penais. Honig (apud PEÑA CABRERA, 1995, p. 39), p. ex., observa que o bem jurídico “[...] é o fim reconhecido pelo legislador nos preceitos penais individuais [...]”. Porém, inexiste rompimento. Apenas se flerta, simpatiza com o jusnaturalismo, realocando o bem no espaço-tempo normativo, da dogmática para a zeetética. Ocorrera, pois, a sublimação do bem como referencial do injusto, vacância logo suprida pela Escola de Kiel. Em cartaz, o dever sociojurídico e a “alma do povo” (BUSTOS RAMÍREZ, 1989, p. 50); consequentemente, déficit de garantias individuais e o...

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