Disputes over the constitutional interpretation of the master plan/ As disputas pela interpretacao constitucional do plano diretor.

AutorBohiito, Aline
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

A primeira vista, o julgamento do Recurso Extraordinario n. 607.940/DF parece tratar de uma questao extremamente especifica, sem maiores repercussoes para o direito urbanistico ou para a politica urbana de forma geral. No entanto, a importancia da decisao do Supremo Tribunal Federal (STF) nao pode ser menosprezada. Isso porque esta no centro desse julgamento a relacao entre as leis especificas que disciplinam o parcelamento, o uso e a ocupacao do solo urbano e o plano diretor--instrumento basico da politica de desenvolvimento urbano, obrigatorio para os municipios com mais de 20 mil habitantes, conforme estabelece a Constituicao Federal. Ao discutirem a questao, os ministros do STF nao tratam apenas de controversias acerca de competencias legislativas e hierarquia entre normas. Sao os proprios sentidos atribuidos ao papel do plano diretor que estao em disputa.

O objetivo deste artigo e reconstruir os argumentos juridicos mobilizados pelos magistrados nas diferentes instancias do Poder Judiciario em que esta questao foi tratada, desde sua origem no questionamento da constitucionalidade de uma lei distrital que regula condominios fechados. A finalidade do artigo e expor as disputas interpretativas em cada um dos ambitos institucionais, indicando como a questao se transformou ao ser analisada pelos tribunais, deixando de versar apenas sobre a constitucionalidade de uma lei especifica. Parte-se da hipotese de que a discussao da relacao entre plano diretor e lei coloca em questao o proprio procedimento democratico para o planejamento urbano. Nao se trata de controversia meramente formal, mas de como se determina a politica que orienta o desenvolvimento das cidades brasileiras. Em outras palavras, e uma discussao sobre como as decisoes que afetam toda a cidade sao tomadas e os criterios para sua alteracao.

A reconstrucao da estrutura argumentativa das decisoes judiciais em diferentes instancias busca contribuir para o debate sobre a relacao entre direito e espaco urbano a partir da premissa de que o judiciario e uma arena central de disputa politica. (1) Parte-se do pressuposto de que o modo como as decisoes sao tomadas e os argumentos judiciais importam. Em primeiro lugar, porque democracia e justificacao estao intrinsecamente vinculadas: fornecer justificativas permite que a qualidade das decisoes possa ser controlada pela sociedade. Sem fundamentacao nao e possivel entender, questionar, concordar ou discordar de uma decisao. Alem disso, o texto das normas juridicas e indeterminado, ou seja, os dispositivos legais nao encerram apenas um unico sentido dado de antemao, seja pelo legislador ou pela literalidade das palavras. Diante dessa abertura, os juizes necessariamente interpretam o texto da lei e escolhem entre mais de uma alternativa possivel. Como se trata de uma escolha, a justificativa e novamente central.

O artigo esta dividido em quatro secoes. Inicialmente, e apresentada uma breve contextualizacao da origem dos embates sociais e politicos acerca do conceito de plano diretor na Assembleia Nacional Constituinte para mostrar como parte das questoes discutidas hoje ja integrava os debates realizados por ocasiao da formulacao do texto constitucional (secao 1). Em seguida, e exposta a estrutura dos argumentos empregados pelos magistrados e demais atores politicos envolvidos em cada uma das fases em que se deu a tramitacao do caso judicial estudado (secoes 2, 3 e 4). As justificativas das diferentes posicoes adotadas e a mudanca da questao central debatida em cada arena em que a controversia foi decidida sao nosso fio condutor.

  1. O plano diretor na Assembleia Nacional Constituinte e no texto constitucional

    A Constituicao Federal de 1988 e a primeira a dedicar um capitulo especifico a questao urbana e um dos artigos se refere expressamente ao plano diretor. (2) No entanto, ainda que sob outra denominacao, planos diretores foram formulados e implementados no Brasil muito antes disso. (3) Se comparados com a primazia da tecnica que de maneira geral estruturava as intervencoes anteriores, (4) a Assembleia Nacional Constituinte e a Constituicao Federal, embora nao constituam a origem historica primeira do instrumento, sao marcos da politizacao dos planos diretores por parte dos movimentos sociais e dos partidos politicos.

    Seria de se esperar, portanto, que a atual redacao do art. 182 tivesse sido fruto de uma iniciativa da sociedade civil. Com efeito, a Emenda Popular da Reforma Urbana, amparada por mais de 130 mil assinaturas e articulada pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana, reivindicava a participacao popular tanto na elaboracao quanto na implementacao dos chamados "planos de uso e ocupacao do solo". Ao longo do processo constituinte, varios termos foram utilizados para designar o instrumento de regulacao do espaco urbano nas cidades--"planejamento do desenvolvimento municipal", "ordenamento territorial", "planos ordenadores do espaco urbano", "planos urbanisticos", entre outros. No entanto, uma das primeiras emendas que utiliza a expressao "plano diretor" e tambem a unica a vincula-lo a nocao de funcao social da propriedade. Proposta pelo bloco conservador conhecido como "Centrao", esta emenda elevou o "plano urbanistico a condicao expressa de paradigma do cumprimento da funcao social da propriedade",5 com a finalidade de criar um obstaculo para impedir que o principio fosse autoaplicavel a propriedade urbana. (6)

    Assim, a exigencia de que os municipios formulassem planos diretores teve o intuito originario de bloquear, ainda que temporariamente, a aplicacao do principio da funcao social para as propriedades urbanas, o que limitou a proposta da Emenda Popular da Reforma Urbana. (7) Tensoes e embates entre forcas sociais opostas perpassaram a propria formulacao do texto constitucional: questoes como a forma, a aplicabilidade, o conteudo e os agentes envolvidos na elaboracao do plano diretor--tematizadas nos votos dos ministros do STF no julgamento do Recurso Extraordinario n. 607.940/DF--ja estavam em pauta ao menos desde 1987. Se as semelhancas sao muitas, tambem e verdade que o debate e travado hoje em outro patamar. A elaboracao dos planos diretores das grandes cidades brasileiras tem sido marcada por intensa participacao e conflituosidade em torno dos usos dos espacos urbanos e da extensao da funcao social da propriedade. (8) Assim, os argumentos e as decisoes aqui analisadas fazem parte de um contexto mais amplo de lutas sociais pelo direito no Brasil.

  2. O questionamento da constitucionalidade da Lei Complementar n. 710/2005

    Em junho de 2007, o Ministerio Publico do Distrito Federal e Territorios (MPDFT) ajuizou Acao Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei Complementar n. 710/2005,9 editada pela Camara Legislativa do Distrito Federal. Proposta por iniciativa do Governo do Distrito Federal, a lei distrital regula os assim chamados "projetos urbanisticos com diretrizes especiais para unidades autonomas". Como esses projetos nao sao objeto de nenhuma outra norma urbanistica brasileira, a propria lei traz, em seu art. 1, [section]1, uma definicao do conceito: "projeto devidamente aprovado pelo Governo do Distrito Federal, para determinado lote, regido pelas diretrizes especiais constantes desta Lei Complementar e integrado por unidades autonomas e areas comuns condominiais, nos termos da Lei Federal n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964". A caracterizacao inicial e complementada pela explicacao de seus elementos constitutivos: lote e "o terreno resultante de quaisquer das modalidades de parcelamento do solo" (art. 3, IV) e unidade autonoma "a unidade privativa que compuser Projeto Urbanistico com Diretrizes Especiais para Unidades Autonomas" (art. 3, VI). (10)

    Esse primeiro grupo de determinacoes indica que se trata de uma regulacao especifica ("projetos urbanisticos com diretrizes especiais") para parcelas determinadas do solo compostas por unidades privativas organizadas em condominio. O particular que tiver um projeto aprovado pelo poder publico tem uma serie de obrigacoes, tais como demarcar as unidades autonomas, implantar o sistema viario e a infraestrutura basica, composta por escoamento das aguas pluviais, iluminacao, e redes de abastecimento de agua potavel, energia e esgoto (art. 4, I e II). Em contrapartida, tem permissao para cercar os limites externos do empreendimento e colocar guaritas para controlar o acesso (art. 6, I e II). Como se vera, todos os atores envolvidos nessa disputa entendem que a lei distrital regula os "condominios fechados".

    O MPDFT desenvolve dois tipos de argumento para defender a inconstitucionalidade da lei distrital. O primeiro argumento e de ordem procedimental e afirma que a materia de que trata a lei, a regulacao dos condominios fechados, teria de ser regulada nao por uma lei especifica, mas pelo Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT) ou pelos Planos Diretores Locais (PDLs). O segundo argumento trata de violacoes materiais aos principios da politica urbana e a Lei do Parcelamento do Solo. (11) Como a constitucionalidade e discutida no plano estadual--a ADIN e destinada ao Tribunal de Justica do Distrito Federal e Territorios (TJDFT)--, o MPDFT organiza seus argumentos tendo por base a Lei Organica do Distrito Federal, (12) que tem status de Constituicao Estadual. Passa-se a examinar cada um dos argumentos de forma mais detalhada.

    Quanto ao primeiro argumento, ao sustentar que o instrumento utilizado para regular os condominios fechados nao foi o adequado, o MPDFT nao questiona a legalidade ou a legitimidade desses condominios, mas tampouco se restringe ao ambito puramente formal. Isso porque traca uma diferenca importante entre o plano diretor--que formalmente e uma lei--e as leis ordinarias e complementares. O plano diretor seria o instrumento mais adequado para uma "abordagem global e contextualizada para mudancas em normas de carater urbanistico" por exigir estudos urbanisticos previos e "um plus a mais [sic]", a...

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