Disposições Preliminares (art. 1º ao art. 5º)

AutorDouglas Martins de Souza
Páginas77-125

Page 77

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.

Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se:

I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;

II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica;

III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais;

Page 78

IV - população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga;

V - políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais;

VI - ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades.

Art. 2º É dever do Estado e da sociedade garantir a igual-dade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Art. 3º Além das normas constitucionais relativas aos princípios fundamentais, aos direitos e garantias fundamentais e aos direitos sociais, econômicos e culturais, o Estatuto da Igualdade Racial adota como diretriz político-jurídica a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira.

Art. 4º A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de:

I - inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social;

II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa;

III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica;

IV - promoção de ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais;

Page 79

V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada;

VI - estímulo, apoio e fortalecimento de iniciativas oriundas da sociedade civil direcionadas à promoção da igualdade de oportunidades e ao combate às desigualdades étnicas, inclusive mediante a implementação de incentivos e critérios de condicionamento e prioridade no acesso aos recursos públicos;

VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros.

Parágrafo único. Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País.

Art. 5º Para a consecução dos objetivos desta Lei, é instituído o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir), conforme estabelecido no Título III.

COMENTÁRIOS

1 A necessidade de um "estatuto"

O Brasil precisa de um Estatuto da Igualdade Racial? Essa é uma questão central no tema da interação racial e étnica em nossa socie-dade. É o ponto de maior tensão envolvendo defensores e críticos das políticas de promoção de igualdade sob essa perspectiva. Há inúmeros argumentos pró e contra. Em favor da adoção de um instrumento jurídico desse tipo estão aqueles que entendem caber ao Estado papel decisivo para a correção de distorções históricas excludentes da população negra. Em desfavor, estão aqueles que entendem desnecessária qualquer intervenção promocional de igualdade racial por parte do

Page 80

Estado. Além das questões clássicas sobre tipologia do Estado de Direito qualificável como "liberal", "social" e/ou "democrático"1, dando conta de maior ou menor intervenção do poder estatal para correção das assimetrias sociais com mais ou menos participação popular, o debate envolve o papel da discriminação racial da população negra na estrutura da desigualdade.

Podemos identificar os argumentos assumidos no debate em três campos distintos. Existem os que negam a discriminação contra a população negra, minimizando-a como um dado periférico2. Existem os que reconhecem a discriminação, mas atacam as políticas de inclusão com foco na população negra, sob o fundamento de que tais políticas

Page 81

acirram o conflito racial em vez de amenizá-lo3. E há os que identificam a discriminação contra a população negra como fator estruturante da desigualdade social brasileira, a ser enfrentado com políticas específicas de ações afirmativas4.

Negar a discriminação ou considerá-la irrelevante na estrutura da desigualdade racial brasileira significa ser indiferente aos dados apresentados por inúmeros institutos de pesquisas, inclusive oficiais, que demonstram reiteradamente, ano após ano, a permanente discrepância dos indicadores sociais entre negros e brancos. Expressões como "racismo estrutural", "embranquecimento da pirâmide social", entre outras, já se tornaram clássicas para notabilizar a discriminação contra a população negra como elemento de identidade na formação socioeconômica brasileira. Essa posição é por nós apontada como da indiferença, porque diante de tais números e de tanta informação disponível sobre o assunto ninguém mais goza do benefício da ignorância quanto ao tema. Ignorância é não saber. Indiferença é saber, mas não se importar.

Page 82

O Brasil, segundo maior país de população negra no mundo e primeiro fora da África5, é também, historicamente, uma das economias mais excludentes6. A população negra é maioria entre os mais pobres7. Essa realidade amplamente conhecida não é ordinariamente reconhecida. Por isso se deve registrar o mérito daqueles que a reconhecem, ponderando-se que isso pode significar um avanço em direção à superação, um passo adiante em relação à indiferença. Os que são indiferentes tergiversam quanto à própria existência da discriminação. Os que reconhecem a existência da discriminação aceitam sua qualificação como questão social pendente de solução.

O reconhecimento da discriminação, entretanto, não implica necessariamente aceitação de políticas específicas de inclusão para a população negra. Quando se parte da premissa de que a pobreza é um fenômeno homogêneo que atinge indistintamente brancos, negros ou

Page 83

índios, homens ou mulheres, trabalhadores do campo ou da cidade, jovens ou idosos, entre outros, chega-se à conclusão de que políticas de inclusão devem ser necessariamente universais8, destinando-se aos "pobres", sem distinção. A tese da homogeneidade entre os pobres sustenta o parâmetro universalista nas políticas públicas de combate à pobreza, conformando a referência quantitativa como indicador suficiente para construção de metas e objetivos nas medidas voltadas à inclusão. Dessa forma a inclusão da população negra seria resolvida inercialmente. Mas o que a história nos ensina é que os parâmetros universalistas, embora necessários, são insuficientes para reverter a exclusão.

1. 1 Parâmetro universal e impacto desproporcional

Imaginemos determinada política estatal dedicada a combater o desemprego, criando novos postos a partir da informação de que 16 em cada grupo de 100 pessoas economicamente ativas encontram-se desempregadas numa determinada região. Os formuladores da política

Page 84

estabelecem como meta a criação de 6 postos de trabalho por 100 pessoas por ano, na expectativa de reduzir a taxa de desemprego de 16% para 10% em um ano. Ao final de um ano verifica-se o sucesso da política, com redução de 6% na taxa de desemprego regional. Todos podem comemorar?

Depende.

Suponhamos que, escrutinando os aspectos sociológicos, os técnicos constatem tratar-se de região caracterizada pela discriminação de gênero no mercado de trabalho. Reexaminados os números, considerada a composição de gênero, percebe-se que para...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT