A dispensa coletiva da Reforma Trabalhista analisada à luz do direito constitucional e da teoria dos precedentes

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas325-333

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Ver Nota1

1. Introdução

Inicialmente cumpre realizar um breve esboço histórico dos trâmites formais utilizados pelos Poderes Executivo e Legislativo na Reforma Trabalhista. Em 23 de dezembro de 2016, o então Presidente da República Michel Miguel Elias Temer Lulia, que assumiu a Presidência do país em virtude do impeachment da Presidenta eleita, Dilma Vana Rousseff, no apagar das luzes enviou para a Câmara dos Deputados um aparente e singelo (mas não despretensioso) Projeto de Lei, atuado como PL n. 6787/2016, propondo a alteração de 7 dispositivos legais reguladores das relações trabalhistas previstos na CLT e de 8 artigos da Lei n. 6.019/1974, que promoviam algumas significativas mudanças no estuário normativo trabalhista: alteração no trabalho temporário, alteração na jornada do trabalho à tempo parcial, eleições de representantes dos trabalhadores no local de trabalho e a prevalência do negociado sobre o legislado em questões pertinentes ao salário, à jornada e às férias.

Decorridos poucos meses de estranha e rápida tramitação, sem que de fato tenha ocorrido qualquer debate democrático, o Plenário da Câmara dos Deputados votou e aprovou um texto substitutivo para o PL n. 6787/2016, possuindo o condão de modificar concomitantemente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e as Leis ns. 6.019/74 (Lei do Trabalho Temporário), 8.036/90 (Lei do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e 8.212/91 (Lei do Custeio da Previdência Social), fazendo com que saltasse abruptamente de 7 para aproximadamente 117 modificações somente na CLT. Posteriormente, o PL n. 6787/2016 tornou-se o PLC n. 38/2017, e que foi aprovado também pelo Senado e sancionado pelo Presidente da República, tornando-se a Lei n. 13.467/2017, que altera, ao mesmo tempo, (modificando e inserindo artigos, letras, parágrafos e incisos) todas estas quatro normatizações, na perspectiva individual e coletiva do direito material e processual do trabalho. O que representa um verdadeiro retrocesso social no estuário social brasileiro jamais ocorrido no país, precarizando a relação de emprego, reduzindo e retirando uma série de direitos conquistados arduamente ao longo do tempo e consagrados na Constituição da República, tornando o trabalhador brasileiro mercadoria e invertendo toda a sistemática do Direito do Trabalho, ao ponto de relativizar o princípio da proteção ao trabalhador.

A Reforma Trabalhista normatiza concomitantemente “novas” formas de trabalho, criando e tipificando o trabalhador autônomo exclusivo, o trabalhador intermitente, o teletrabalhador, o terceirizado, o quarteirizado, o empregado hiperssuficiente e, em nome da autonomia da vontade, faz com que o negociado prevaleça sobre o legislado, mesmo que para piorar a situação de vida do trabalhador, restringe a atuação da Justiça do Trabalho na análise dos instrumentos coletivos de trabalho, mudando o conceito e alcance da assistência jurídica integral e gratuita e, com isso, cria obstáculos para o acesso à Justiça. Ainda não satisfeito, relativiza a proteção legal ao meio ambiente de trabalho e à saúde dos trabalhadores, permitindo livre negociação coletiva e até individual sobre normas de saúde e segurança do trabalho, que sempre foram e são de ordem pública e, por isso, indisponíveis ao talante das partes, equipara as dispensas individual, plúrima e coletiva, altera o conceito de tempo à disposição, de jornada de tempo parcial, de horas in itinere e de grupo econômico e ainda diz que “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho”. Por meio destas mudanças legislativas, a empresa ganha superpoderes para escolher quem e como vai contratar, reduz seu espaço físico e transfere parte de seu ônus para os trabalhadores. Com isso já se pode imaginar, a partir dessas mudanças normativas, empresa sem empregado.2

Dentre as inúmeras alterações acima narradas, escolheu-se para o presente artigo o tema regulamentado no art. 477-A da CLT, qual seja, o direito à proteção à dispensa coletiva. Na verdade, este novo artigo que foi inserido na CLT, por meio

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da Reforma Trabalhista, retira a proteção que até então era destinada à dispensa coletiva, fruto de um precedente judicial constituído pelo Tribunal Superior do Trabalho e que fazia uso e efetivava, ao mesmo tempo, diversos princípios constitucionais e o direito comparado, hipóteses estas previstas no art. 8º da CLT. Este verdadeiro retrocesso ocasionado pela Reforma Trabalhista dar-se-á tendo em vista que a redação do art. 477-A da CTL, para todos os fins legais, equipara as dispensas individual, plúrima e coletiva, fatos estes que são inconfundíveis, assim como Flamengo, Botafogo e Fluminense, enquanto que o precedente judicial reconhecia as diferenças entre estas dispensas e tão logo destinava uma maior proteção à dispensa coletiva, devido à sua magnitude e efeitos sociais.

Sabe-se que a dispensa é um tema atual e corriqueiro no dia a dia dos brasileiros e de enorme relevância social, jurídica, econômica e política, sendo que em tempos atuais de crise ela opera com maior frequência. Analisar a dispensa significa necessariamente também estudar um dos direitos trabalhistas mais importantes: que é o da proteção ao emprego, ou seja, a zona limítrofe entre o emprego e o desemprego – um dos piores males que uma sociedade por vivenciar, e que no Brasil atinge, conforme dados do IBGE, o número aproximado de 14 milhões na presente data. O direito à proteção ao emprego é um direito que esconde várias faces ocultas e perversas, consequências na vida e na família do trabalhador, afinal, uma pessoa sem emprego perde também o seu cotidiano, os seus colegas de trabalho, a sua inclusão social, prejudica o pagamento das suas despesas básicas e as de sua família – prestação do seu carro, da sua casa, mensalidade do colégio dos filhos e quem sabe até a sua necessidade vital: a comida. Portanto, proteger a dispensa, significa defender a própria dignidade do ser humano e não somente o recebimento das verbas rescisórias e indenizatórias do empregado.

2. Da dispensa coletiva antes do art 477-A da CLT

Até a Reforma Trabalhista a dispensa coletiva não era regulamentada na CLT, de maneira específica em nenhum aspecto. Portanto, este diploma normativo regulamentava somente a dispensa individual, através de algumas previsões legais. No campo do direito material, destacam-se os arts. 482 e 483 da CLT e algumas leis esparsas, principalmente nas hipóteses das estabilidades provisórias do cipeiro, do dirigente sindical, do acidentado e da gestante. Quanto ao direito processual aplicável, salienta-se que quase toda a CLT direciona-se aos litígios de cunho individual, ressalvados os arts. 857 a 875, aplicáveis, exclusivamente, ao dissídio coletivo.

Lado outro, quanto à dispensa coletiva, o complexo normativo trabalhista era completamente silente, deixando de regulamentar o tema especificamente tanto no espectro material, como no processual.

Tendo em vista essa, até então, significativa e gritante lacuna normativa celetista, no campo material e processual quanto à dispensa coletiva – não obstante tratar-se de tema de grande relevância social, jurídica, econômica e política – tornam-se oportunas as seguintes indagações: (i) Como fica caracterizada uma dispensa coletiva? (ii) O que diferencia uma dispensa individual, uma plúrima e uma dispensa coletiva? (iii) Existe direito potestativo na dispensa coletiva? (iv) Algum procedimento prévio deve ser obedecido? (v) Ela encontra-se sujeita ao controle do Poder Judiciário? (vi) Como ela deve ser levada até os Tribunais? (vii) Nos dizeres de Carlos Alberto Reis de Paula: “Afinal, o que é dispensa coletiva?”3

Tem-se a regulamentação da dispensa coletiva, pelo fato da sua regulação ultrapassar os umbrais epidérmicos da questão particular entre empregado e empregador e alcançar o viés coletivo, social e econômico, sendo questão de ordem pública, abarcando, simultaneamente, interesses particulares e públicos. Isso porque os efeitos derivados da dispensa coletiva possuem uma abrangência social e econômica muito maior do que a dispensa individual, alcançando a sociedade em si, pois interfere diretamente na circulação de bens e serviços, na distribuição de renda e na inclusão social da classe trabalhadora.

O fato da dispensa coletiva não ser regulamentada especificamente na CLT é um literal descompasso com a massificação da sociedade, afinal se esta hoje se organiza e pratica atos em massa (dentre eles, a dispensa coletiva), corolário lógico que a ciência do Direito deve ofertar à população uma norma-tização também nesta perspectiva, para, deste modo, garantir a segurança jurídica e a paz social.

A dispensa coletiva não atinge um empregado determinado, mas, sim, concomitantemente vários empregados, a categoria de trabalhadores (coletivo stricto sensu), a sociedade e até mesmo o Estado, indistintamente, por meio de um ato único (ou de atos sucessivos). Uma dispensa coletiva, a depender do número de trabalhadores afetados, pode ensejar, até mesmo, outras dispensas coletivas, interferindo na ordem econômica local e ganhando ares de direito individual homogêneo, como no caso uma grande dispensa coletiva atingindo centenas ou milhares de empregados, em um contexto de crise econômica. Dependendo do tamanho do município ou da região, várias outras empresas ficarão prejudicadas na venda de seus produtos e, logo, irão dispensar seus empregados, fazendo com que outras dispensas coletivas também ocorram, alcançando assim a perspectiva de direito difuso.

Em relação à falta de regulamentação celetista direcionada à dispensa coletiva e à consectária insegurança jurídica, pode-se dizer que ocorrências trabalhistas dessa ordem perduraram até o ano de 2009, quando, no Tribunal Regional...

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