Discriminação racial e assédio moral no trabalho

AutorRúbia Zanotelli de Alvarenga
Páginas33-43

RECONSTRUIR-SE

(SER CRIANÇA!)

Reconstruir-se após a desgraça, com a música, a dança, recriando a vida que passa, que se procura e não se alcança.

Recolher, com firmeza, a casa perdida, em pedaços, pela força da correnteza, reconstruindo novos espaços.

Montar, fio a fio, o tecido, da vida, que recomeça, recriando, lentamente, o sentido do que é preciso, peça a peça. Quando as noites ruins (vilãs!), alteradas pelo sol e pela esperança, transformarem-se em manhãs, voltar a ser, de novo, criança.

(Luiz Eduardo Gunther)

1. Introdução

Este artigo se inicia de forma diferente daquela como, habitualmente, iniciam-se os artigos pertinentes à área do Direito Trabalhista. Um tanto anacrônica, intenta constatar a noção de preconceito de raça (étnico) e uma de suas principais consequências: o assédio moral - vigente neste País há séculos.

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O estudo não se atém a fatos específicos da História como é usual, mas, sim, basicamente, a situações ocorridas com um grande poeta simbolista da Literatura Brasileira: Cruz e Sousa (1861-1898). Em um artigo intitulado "A trajetória do negro na Literatura Brasileira", Domício Proença Filho1 (grande estudioso brasileiro), situa o negro em duas posições: a primeira, como ser-objeto e, a segunda, distanciada, como sujeito, numa atitude compromissada na luta por um melhor lugar social. Tal estudo gerou a motivação de se realizar o presente artigo que se alicerça na primeira visão de Proença Filho (aquela em que o negro é visto como objeto) com o excerto de um texto em prosa de Cruz e Sousa, um dos poetas a mais sofrer o preconceito racial no Brasil, mesmo tendo excelente grau de escolaridade. Porém, ao perder a proteção do padrinho adotivo, um homem branco e rico, o poeta advogado viu-se vítima de um preconceito racial tão intenso, que culminou, praticamente, com sua expulsão do Estado natal, Santa Catarina, pois lá não conseguia trabalho condizente com sua escolaridade; ou, quando o conseguia, era tão perseguido, que não suportava conviver com o assédio moral ao qual era submetido por ser negro, desiludindo-se cada vez mais a cada vínculo empregatício. Tamanho sofrimento o obrigou a buscar um reinício de vida no Rio de Janeiro, onde também não conseguiu um trabalho que fizesse jus à sua formação acadêmica.

Em decorrência da convivência com o preconceito, Cruz e Souza deu à luz um texto em prosa intitulado "Emparedado", do qual, a seguir, transcreve-se, um fragmento que refiete, magnificamente, como devem se sentir os trabalhadores negros impedidos de desempenhar em paz suas atividades de trabalho em razão do preconceito étnico e do assédio moral ao qual são submetidos por tal herança histórico-cultural perversa que afiige milhares de afrodescendentes no dia a dia. Veja-se:

Se caminhares para a direita, baterás e esbarrarás ansioso, afiito, numa parede horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira. Se caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeito e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará do alto! Se caminhares, enfim, para trás, há ainda uma derradeira parede, fechando tudo, fechando tudo - horrível! - parede de Imbecilidade e Ignorância, te deixará n’um frio espasmo de terror absoluto. [...] E as estranhas paredes hão de subir - longas, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até as Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro do teu Sonho [...].2

Cruz e Sousa, o notável poeta do Simbolismo brasileiro, é um caso singular. Negro, deixa entrever na sua obra as marcas do confiito em que se dilacerava. Filho de escravos alforriados, com nome, sobrenome e educação esmerada ganhados dos senhores de seus pais, sofreu amargamente a violência do preconceito que o impediu, entre outras consequências discriminatórias, de assumir o cargo de promotor público em Laguna. No plano da ação, assume a luta contra a opressão racial e, entre outras atividades, dirige o jornalzinho O Moleque, significativo desde o título, e deixa nove poemas e dois textos em prosa comprometidos com a causa abolicionista. Sua obra literária é um testemunho de sua luta contra o preconceito e contra o assédio moral. Seu texto em prosa "O Emparedado" não dá margem a dúvidas sobre isso.

Passados mais de cem anos do ocorrido a Cruz e Sousa, a metáfora do emparedamento

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continua, infelizmente, subsistindo, não na forma do racismo explícito - visto que, hoje, existem leis punitivas à prática deste, mas, em sua maneira mais subreptícia, o assédio moral, ocorrente, em especial, nos ambientes de trabalho, nos quais pode acontecer de modo vertical descendente, ascendente ou horizontal.

É de tal prática nociva ao trabalhador de etnia negra que trata o artigo ora apresentado, pelo qual se busca visualizar aquilo em que a Justiça do Trabalho avançou no combate ao ato e aquilo em que ainda é preciso avançar.

Como, ao que parece, o emparedamento ao negro tende a existir de modo mais discreto, um de seus tentáculos mais cruéis, o assédio moral, continua a fazer vítimas, silenciosamente, dada a dificuldade de se fiagrar sua ocorrência por causa da natureza dissimulada das ações come-tidas contra as vítimas.

2. Discriminação e direito do trabalho

Apesar de todas as conquistas sociais do último século, alguns direitos básicos dos cidadãos carecem de uma base mais sólida para serem incorporados pela população em geral, pelas esferas do Governo e pela iniciativa privada. Um desses direitos é a garantia do acesso livre ao trabalho sem discriminação.

Em tal contexto, informa Manoel Jorge e Silva Neto3 que discriminar portador de deficiência, negros, índios, mulheres, idosos, homossexuais e até aqueles trabalhadores que optam por um traço estético peculiar - cabelos longos, barba, cavanhaque, tatuagem, piercing - tem se convertido em prática mais constante do que se supõe à primeira vista. O mesmo se diga a respeito dos trabalhadores que optam por determinado segmento religioso e que são discriminados por isso.

Na visão do autor em referência, a solução para as práticas discriminatórias empresariais passa, necessariamente, pela mudança da cultura quanto à diversidade4.

Sendo assim, é urgente aprofundar uma cultura da justiça social em que a tutela dos direitos fundamentais do trabalhador seja respeitada, visto que é para o bem-estar do ser humano o direcionamento do trabalho. É para garantir a observância quanto à integridade física, psíquica, moral e intelectual do trabalhador que se devem voltar as leis que regem as relações interpessoais, hierárquicas, ou não, nos ambientes em que se processe o trabalho. Isso representa sinônimo de justiça social.

E, como bem expressa Yara Maria Pereira Gurgel: "O fundamento principal de todo o ordenamento jurídico ocidental é o princípio da dignidade da pessoa humana, agregado ao princípio da igualdade e não discriminação."5

Assim, também conforme Yara Maria Pereira Gurgel, toda e qualquer forma de discriminação baseada em razões como raça, sexo, cor, estado civil, orientação sexual, idade, nacionalidade ou condição física, além de arbitrária, contrariará o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Ainda segundo a autora, a discriminação nas relações de trabalho, como fator antissocial, exclui pessoas, desrespeita os direitos da personalidade, a dignidade da pessoa humana, gerando humilhação, estresse, mobbing e depressão6.

Segundo Marlon Marcelo Murari: "O direito à igualdade também impõe limites ao poder de direção do empregador, proibindo tratamentos discriminatórios, desde o ato da contratação e durante a realização do trabalho."7

O art. 3º, IV, da Constituição Federal de 1988, assinala que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,

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raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.

Discriminação, portanto, é o nome que se dá para conduta, ação ou omissão, em que se estabelecem diferenças que violam o direito das pessoas com base em critérios ilegítimos e injustos, tais como: a raça, o sexo, a idade, a opção religiosa e sexual, entre outros. Trata-se de um tipo de conduta que vai contra o princípio fundamental de justiça e liberdade.

De acordo com Carlos Augusto Ayres Britto8, discriminar significa distinguir negativamente, negativando o outro. É isolar, separar alguém para impor a esse alguém um conceito, uma opinião desfavorável por motivos puramente histórico-culturais, jamais lógicos, jamais racionais, por defecção, por distorção, por disfunção de mentalidade ao longo de um processo histórico-cultural. E isso implica humilhação: humilhar o outro. E o humilhado se sente como que padecente de um déficit de cidadania, de dignidade, acuado pelo preconceito. O discriminado se sente como sub-raça ou subpovo ou subgente. Sente-se, portanto, desfalcado não do que ele tem, mas do que ele é. E a sua autoestima fica ao rés do chão. Para Firmino Alves Lima:

Há discriminação nas relações de trabalho, quando um ato ou comportamento do empregador, ocorrido antes, durante e depois da relação de trabalho, implica uma distinção, exclusão, restrição ou preferência, baseado em uma característica pessoal ou social, sem motivo razoável ou justificável, que tenha por resultado a quebra do igual tratamento e a destruição, o comprometimento, o impedimento, o reconhecimento ou o usufruto de direitos e vantagens trabalhistas assegurados, bem como direitos fundamentais de qualquer natureza, ainda que não vinculados ou integrantes da relação de trabalho.9

No magistério de Mauricio Godinho Delgado, o princípio da não discriminação compreende "a diretriz geral vedatória de tratamento diferenciado à pessoa em virtude de fator injustamente...

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