Discriminação ou medida de segurança pública? Uma breve análise da juridicidade de critério de seleção para trabalho em obras de penitenciárias

AutorRenata Coelho Vieira
CargoProcuradora do Trabalho lotada na PRT15ª Região, Campinas/SP
Páginas265-277

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Introdução

Como o ensaio aqui proposto decorreu da análise de um caso concreto ocorrido, nos interessa transcrever o acórdão proferido pelo e. Tribunal Regional do Trabalho da 15§ Região, que permitirá conhecer uma pequena exposição da situação fática apresentada, bem como das questões jurídicas em debate:

O Ministério Público do Trabalho1 ajuizou Ação Civil Pública em face de CIMA Engenharia e Empreendimentos Ltda. e Fazenda Pública do Estado de São Paulo aduzindo que ocorreram atos discriminatórios na seleção de pessoal para trabalhar na reforma da penitenciária Dr. Sebastião Martins Siqueira, uma vez que a primeira requerida não teria contratado trabalhadores que possuíssem parentes com antecedentes criminais. Argumentou que o ato discriminatório desrespeitou interesses transindividuais trabalhistas, tratando-se de lesões que se amoldam na definição do art. 81, parágrafo único da Lei n. 8.078/1990. Assim, postulou a concessão de liminar, para que a primeira requerida seja condenada a se abster de qualquer ato discriminatório, sob pena de incidir em multa de R$ 10.000,00 por trabalhador, bem como ao pagamento da quantia de R$ 200.000,00 a título de reparação pelos danos sociais causados; e concessão de liminar em relação à segunda requerida, para condená-la a se abster de exigir, solicitar ou influenciar a prática de qualquer ato discriminatório, sob pena de incidir em multa de R$ 10.000,00 por trabalhador, bem como à condenação solidária ao pagamento da quantia a título de reparação por danos causados.

Em contestação (fls. 117/137), a segunda reclamada aduziu, em síntese, que em julho de 2006, após rebelião orquestrada em vários locais do Estado de São Paulo, ligada à facção criminosa do Primeiro Comando da Capital (PCC), os detentos destruíram as celas da unidade penal de Araraquara, impondo a reforma em caráter de emergência do referido complexo penitenciário. Salientou que durante o tempo de duração da obra por ela executada os funcionários, gestores e prepostos foram intermitentemente agredidos e ameaçados pelos detentos que permaneceram no local, que 'xingavam' e 'juravam' de morte a todos, fortalecidos que estavam com o êxito que a desestabilização em cadeia patrocinada pelo PCC em todo o Estado de São Paulo fomentava. Nesse sentido, argumentou que a postura adotada pelo Diretor da Penitenciária visou a preservar a segurança pública, 'uma vez que a reforma do presídio — de caráter emergencial — ocorreu, todo o tempo, com detentos encarcerados no mesmo espaço físico, com contato direto com os trabalhadores contratados para a reforma', requerendo ações excepcionais afirmativas por parte do Estado. Sustentou que o interesse público, no caso, suplantou o interesse individual dos aspirantes ao emprego.

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A primeira reclamada alegou em sua contestação (fls. 180/194) que a situação que levou à necessidade de reforma da penitenciária de Araraquara justificou a restrição de contratação dos empregados, a fim de se evitar que parentes dos detentos trabalhassem na obra. Nesse sentido, asseverou: 'as circunstâncias especiais que permeiam uma penitenciária de segurança máxima não são as mesmas que cercam um estabelecimento comercial ou outro estabelecimento equivalente. Nos parece razoável o fato de que, para a reforma de uma unidade prisional, não se preferisse a contratação de pessoas que pudessem, de alguma forma, ter interesse em sua vulnerabilidade. Não se trata de discriminação ou preconceito, trata-se, apenas, de precaução plenamente justificada'. Sustentou que o interesse da sociedade em ter garantida a segurança pública se sobressai ao interesse individual dos aspirantes ao emprego para trabalhar no interior do maior presídio de segurança máxima masculino do interior do Estado de São Paulo, restando justificada a seleção que preferisse empregados sem antecedentes criminais e que não possuíssem parentes na condição de presidiários.

Julgadas improcedentes as pretensões deduzidas, o Ministério Público do Trabalho interpôs recurso ordinário, renovando os argumentos lançados em sua primígena.

Sem razão o inconformismo lançado.

Com efeito, a alegada discriminação visou à proteção do interesse maior da sociedade, qual seja, o de contar com medidas concretas levadas a cabo pelo Estado para garantia da segurança pública. Nesse sentido, pede-se vênia para transcrever os fundamentos da bem lançada sentença proferida, que analisou com propriedade as questões debatidas no feito:

Em segundo lugar, mister trazer-se ao foco desejável o entendimento sobre a igualdade formal como um dos princípios que norteiam as relações jurídicas.

Nessa esteira, o princípio da igualdade "só pode ser entendido racionalmente, no sentido de promover, tanto quanto possível, uma igualização formal das desigualdades humanas e sociais e tratar desigualmente os seres desiguais, na proporção em que se desigualam, para igualizá-los no plano jurídico". (MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 14. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1983. p. 296)

Não se podem olvidar as peculiaridades aninhadas ao redor do caso presente. Não se tratava de uma obra comum em que os interesses conjugados encontravam-se no mesmo patamar ainda que não no mesmo grau de valores, ou seja, o interesse econômico da iniciativa privada de um lado, confrontando com o interesse social na busca de emprego e subsistência.

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A obra foi realizada num presídio de segurança máxima situado nesta cidade e comarca de Araraquara, motivada pela necessidade (urgente) de reformas em decorrência da destruição causada pela última grande rebelião dos detentos, amplamente divulgada pela mídia.

Ora, o mesmo Estado que tem a responsabilidade de coibir e não praticar atos discriminatórios, também tem a responsabilidade de adotar todas as medidas concretas e plausíveis para garantir a segurança da coletividade.

As responsabilidades não são antagônicas, em que pese num dado momento a exigência da superposição de uma em relação à outra.

Vale dizer que um mesmo ato poderá, numa determinada situação, configurar-se como discriminatório, enquanto que noutra, em que os interesses opostos ganham supremacia e relevância, não.

E, destacou o magistrado, "ninguém deve desconsiderar, até porque amplamente difundido, a incrível capacidade criativa na eleição de meios para possibilitar fugas ou rebeliões dentro dos presídios de todo o sistema penitenciário brasileiro, atos estes que não raro acabam por ceifar vidas, no mais das vezes, inocentes". Para ilustrar, no depoimento do Diretor da Penitenciária, tomado no inquérito civil instaurado pelo Ministério Público do Trabalho (fl. 37), foi mencionado que "tem notícia de que na...

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