Discriminação e Igualdade de Oportunidades no Direito do Trabalho

AutorEstêvão Mallet
Páginas70-91

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1. Introdução

A garantia jurídica de igualdade é muito mais complexa do que leva a crer o dito simples - e tão corrente - segundo o qual significaria tratar de modo igual os iguais e de modo desigual os desiguais1. Resumir assim princípio tão relevante não passa, no fundo, de empty tautology2. Afinal, o problema está em definir quando as situações são iguais, a impor igualdade de tratamento, e quando não o são, a justificar a diferenciação3. Mas para chegar a essa definição é preciso compará-las4, o que

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supõe delinear o que já se chamou de périmètre de comparaison5. Tomados os objetos, os eventos e as pessoas em sua integralidade, torna-se impossível compará-los. Como dito por Jean Renauld, "un jugement de similitude suppose... que l’on isole parmi tous les caractères qui définissent deux êtres, ceux par référance auxquels ils pourront être dits semblables ou dissemblables"6. Considerem-se, a título ilustrativo, duas pessoas. Sem isolar os elementos para a comparação - ou, para repetir a expressão antes mencionada, o périmètre de comparaison -, pode-se chegar a qualquer resultado que se queira, ainda que opostos. É possível dizê-las, a um só tempo, iguais e desiguais. Ambas são pessoas e se igualam em tal aspecto, mais geral. De outro lado, cada pessoa é um ser único, completamente diferente de todos os demais7. Nas palavras de Thomas-Louis Bergeron, "la nature ne s’accomode pas mieux de l’égalité que du vide. Elle se complait dans une infinie diversité. Les êtres humains surtout sont soumis à cet impératif. Tous diT érents les uns des autres, ils ne peuvent être tenus pour égaux à tous égards"8. O mesmo vale para os objetos e para os eventos9. Não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio, lembraria Heráclito.

Na oposição entre o comum e o individual está o grande problema para a definição da igualdade e da desigualdade. Que elemento considerar na comparação? Qual aspecto, em dada situação, é relevante e qual outro não tem importância e, por consequência, não deve nem pode ser levado em conta na formulação do juízo sobre igualdade ou desigualdade? Daí advertir-se para o fato de que a escolha do elemento de comparação é, no campo da igualdade, não somente "capital"10, mas, ao mesmo tempo, "très délicat"11. Afinal, em alguns contextos o gênero pode ser importante na comparação entre pessoas e a resposta torna-se evidente. Como apenas a mulher pode gestar, para se definirem direitos relacionados com a gestação o gênero é algo que certamente importa. Em outros contextos, ao contrário, o gênero não tem relevância. Hoje ninguém o considerará para definir, por exemplo, a capa-

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cidade para o exercício da advocacia. Quando se passa a outros campos, todavia, o quadro é muito menos nítido. Em matéria de aposentadoria, por exemplo, ainda se leva em conta o gênero para desigualar, conferindo-se aposentadoria por idade antes à mulher do que ao homem12. Será justificável a distinção?

As dificuldades se agravam quando se observa que aquilo que hoje parece certo, no tocante à legitimidade do elemento tomado para a distinção, no passado não o era. Com o evoluir da sociedade, muda a própria visão que se tem a respeito da validade do parâmetro de diferenciação. Como escreveu um autor, "no plano jurídico, o conceito de igualdade revela-se historicamente como uma ideia dinâmica, constantamente adaptável ao devir social e às mutações operadas na sociedade"13.

O caso da capacidade para o exercício da advocacia, lembrado acima como exemplo fácil, ilustra o ponto. Já se entendeu que o gênero teria relevância para impedir que mulheres advogassem14. É algo que agora tem todas as cores de aberração. Não se apresentará também como aberrante, em cinquenta anos, a distinção fundada no gênero, para delimitação do direito à aposentadoria por tempo de serviço, como hoje ainda se faz? Na Bélgica nem foi preciso esperar tanto para dar um primeiro passo. A Cour d’arbitrage, em decisão de 1994, considerou inconstitucional legislação de 1º de abril de 1969, que estabelecia idades diferentes para aquisição do direito ao benefício por ela criado15. Assinalou que, mesmo reconhecida a possibilidade de tratamento diferenciado para compensar desigualdades passadas, "...dès lors que, comme le permet la loi en cause, une personne a droit à des moyens d’existence plus ou moins importants selon qu’elle est homme ou femme, toutes autres choses étant égales, la Cour ne peut que constater une violation des articles 6 et 6bis de la Constitution par une discrimination en fonction du sexe »16.

Em resumo, conforme já se disse, de modo incensurável, em matéria de igual-dade e de discriminação, "toute la diU culté consiste à dire quand deux situations sont semblables, et quand elles sont diferentes"17.

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2. Igualdade entre homem e mulher

O preceito que em primeiro lugar chama a atenção no campo da legislação trabalhista brasileira, em matéria de igualdade, é o art. 5º da CLT: "Para trabalho de igual valor corresponderá igual salário, sem distinção de sexo". É significativa a referência apenas à igualdade de tratamento entre pessoas de sexo diferente. Muito mais acertada seria previsão ampla, excludente de qualquer forma de discriminação, seja a praticada em prejuízo da mulher, seja outra, praticada em detrimento de qualquer pessoa. Seria suficiente dizer, como se vê em tantas legislações mais recentes, que se deve assegurar igualdade de tratamento entre trabalhadores.

A referência apenas à mulher resulta, no fundo, do peso histórico da discriminação por motivo de sexo18, especialmente em matéria remuneratória, mesmo em países com maior tendência à igualdade, bem evidenciado pelo tratamento dado ao tema no plano internacional, com tantos atos normativos cujo objeto específico é a discriminação de gênero19. É, aliás, o que também explica a regra expressa e algo redundante do inciso I, art. 5º, da vigente Constituição. Ante os termos gerais do caput, do mesmo art. 5º, não seria preciso dizer que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações", como não escapou à doutrina mais atenta20. A ênfase decorre de passagens históricas muito expressivas em matéria de discriminação por motivo de gênero, a demonstrar claramente como esteve ela entranhada na cultura ocidental, ainda recente, a ponto de escrever uma autora francesa: "historiquement, le travail eT ectué par les femmes est demeuré en marge des emplois eT ectués par les hommes et a été considéré de moindre valeur"21.

No Brasil, para mostrar como o problema não existe apenas além das fronteiras nacionais, esteve formalmente em vigor até 1989 - o que hoje parece incrível - a regra do art. 446 da CLT, que atribuía ao marido a faculdade de rescindir o contrato de trabalho da mulher. Mesmo após a Constituição de 1988 prevalece, em jurisprudência, a afirmação da necessidade de tratamento diferenciado da mulher, com a proposição de subsistência do intervalo antecedente à jornada extraordinária, nos termos do art. 384, da CLT, diversamente do quanto estabelecido para o homem22.

A conclusão mal se harmoniza com a ideia mais ampla de igualdade entre homens e mulheres23.

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Em síntese, a persistência, ao longo do tempo, da discriminação por motivo de sexo é que explica a regra do art. 5º da CLT, e, no âmbito europeu, haver sido a igualdade entre mulheres e homens alçada a valor fundamental da União Europeia, consoante a previsão do art. I-2º, da Constituição Europeia24, a despeito da previsão específica do Título III, no art. II-83º25. É também o que explica, agora no plano da legislação interna brasileira, o fato de a norma geral contra a discriminação, inserida no texto da CLT em data mais recente, figurar exatamente no Capítulo que cuida do trabalho da mulher26.

De qualquer sorte, invertidos os termos da equação, não se pode impor, para a fruição de um direito por homem, requisito não estabelecido para mulher, desvinculado completamente do sexo. Foi o que levou o Supremo Tribunal Federal a considerar inconstitucional lei estadual que exigia a condição de inválido para o recebimento de pensão pelo marido, em caso de falecimento de sua mulher, exigência não estabelecida para que a mulher pudesse receber o mesmo benefício, em caso de falecimento de seu marido27. Do mesmo modo, não se pode limitar o exercício de certas funções, em que o sexo é irrelevante, apenas às mulheres. Admitir, para o exercício da função de comissário de bordo em aeronaves, somente mulheres, e não homens, é ilegal, como decidiu a jurisprudência norte-americana28.

3. Igualdade racial

Há uma ideia generalizada de que no Brasil a discriminação racial é muito menos intensa e muito menos acentuada do que a encontrada em outros países. Isso decorreria, segundo a conhecida concepção de Gilberto Freyre, da colonização portuguesa, tida como menos segregacionista no tratamento dispensado aos escravos, permitindo mais facilmente a miscigenação, de que decorre o mito da assim chamada democracia racial29. Esse juízo não retrata bem a realidade, no entanto.

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Não existe aqui, com certeza, a discriminação explícita e violenta, encontrada nos Estados Unidos da América, país em que, até 1953, com a decisão tomada no caso Brown v. Board of Education30, ainda prevalecia a tese da legitimidade do tratamento diferenciado entre brancos e negros, firmada no final do...

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