Discipline, biopolitics and "sidadanization": considerations from the application A Hora e Agora--Testar nos deixa mais fortes/ Disciplina, biopolitica e "sidadanizacao": consideracoes a partir do aplicativo A Hora e Agora--Testar nos deixa mais fortes.

Autorde Araujo, Dhyego Camara

Introducao

"[A aids] foi estudada inicialmente em homossexuais, comecou a ser procurada insistentemente em homossexuais e, naturalmente, foi encontrada em homossexuais" (Dr. Jean Claude Nahoum apud Perlongher, 1987).

O diagnostico a respeito dos estudos sobre a aids feito pelo Dr. Jean Claude Nahoum representa de forma significativa o que aqui se propoe nas proximas paginas: compreender a homossexualidade enquanto elemento forjado no real atraves de tecnicas, praticas e mecanismos dirigidos sobre os corpos, que os constituiram a partir de criterios colacionados e arregimentados em torno do que se chamou no mundo ocidental de scientia sexualis. Alem disso, busca-se apontar para uma reativacao da nocao de "doenca reinante" com a deflagracao da epidemia de aids na decada de 1980, relacionando-a ao modo de vida considerado gay, marcada, todavia, a partir de entao, pelos mecanismos e regulacoes proprios da tecnologia biopolitica.

Tratar a sexualidade sob o prisma de uma ciencia, ao mesmo tempo em que lhe confere ares de um fenomeno epistemologico sobre o qual sao emitidos discursos com valores de verdade, encobre, por outro lado, as inflamacoes de ordem moral que percorrem os terrenos discursivos nos quais ela e elaborada como uma ideia, posta em funcionamento enquanto praticas intersubjetivas e controlada a partir do estabelecimento de politicas publicas.

Nesse sentido, emerge o dispositivo da sexualidade como nocao fundamental que percorre todo o trabalho. Segundo Michel Foucault, e nele que se entrecruzam praticas disciplinares dirigidas aos corpos individuais e tecnicas de regulacao e controle que operam sobre a populacao, lancando tais corpos--individuais e populacional--a um terreno disciplinado e regulado pelos efeitos do poder normalizador.

Apoiados nessa nocao, busca-se vislumbrar os efeitos de normalizacao disciplinar e biopolitica irradiados a partir do aplicativo digital chamado A hora e agora--testar nos deixa mais fortes, lancado pela prefeitura de Curitiba. Trata-se de politica publica de saude de controle e prevencao de HIV-aids direcionada especificamente a homossexuais e homens que fazem sexo com outros homens. Se, por um lado, efetiva direitos relacionados a saude de tais sujeitos, por outro, carrega consigo, de modo mais sutil e talvez por isso mais ardiloso, consequencias de ordem moralizante, reforcando o estigma de tais subjetividades como portadoras de uma sexualidade perversa e que se apresentam, elas mesmas, como um risco biologico para a propria populacao. Figura, portanto, de modo eloquente, como exemplo de medidas relacionadas ao processo de construcao da cidadania de pessoas LGBTI, da "sidadanizacao".

Assim, o primeiro capitulo se dedicara a uma genealogia do olhar medico a respeito da nocao de doenca, demarcando a diferenciacao existente entre a concepcao corrente no seculo XVII de doenca reinante e sua posterior transformacao a partir da emergencia do aparato biopolitico no final do seculo XVIII. Sustentamos, porem, que com o surgimento da epidemia de HIV-aids no Brasil na decada de 1980 houve uma reativacao de tais discursos relacionando a sindrome a um modo de vida especifico, que se convencionou chamar de homossexual. Foi nesse mesmo contexto que a homossexualidade ganhou maior visibilidade no ambito das praticas sociais, o que possibilitou a construcao da "sidadania" desse grupo de sujeitos a partir de direitos relacionados ao combate e prevencao da doenca.

Feita essa analise genealogica, os capitulos posteriores se dedicam a uma analitica do poder no que se refere aos efeitos de normalizacao efetivados a partir da politica publica de saude em questao, dedicando-se, no segundo capitulo, a uma explicitacao de seu carater disciplinar, para, no seguinte, lancar luz sobre sua dimensao biopolitica.

  1. Uma genealogia da nocao de doenca e o processo de "sidadanizacao".

    Em 25 de janeiro de 1978, no curso Seguranca, Territorio, Populacao, Michel Foucault declara um deslocamento importante instaurado no pensamento medico ocidental no seculo XVII. A partir da variolizacao, a doenca deixa de ser compreendida em uma categoria muito solida e consistente do dominio do saber medico, o que se entendia na epoca por "doenca reinante". Havia nesse periodo uma nocao macica de doenca, uma designacao substancial. "Uma doenca que esta ligada a um pais, a uma cidade, um clima, um grupo de pessoas, uma regiao, um modo de vida. Era nessa relacao macica e global entre um mal e um lugar, um mal e pessoas, que se definia, se caracterizava a doenca reinante" (FOUCAULT, 2008, p. 79). Com o advento dos processos de vacinacao e inoculacao, a doenca passa a ser enxergada como exemplos de casos e perigo de riscos e nao mais naqueles termos gerais conglobantes capazes de abarcar um grupo que traria qualquer traco de homogeneidade.

    Mais de dois seculos depois, em 24 de abril de 2015, a prefeitura de Curitiba oferece a sua populacao uma alternativa inovadora para a realizacao do teste de HIV/aids (1), parte do projeto "A hora e agora--Testar nos deixa mais fortes". Por meio de um aplicativo baixado em seus celulares, os cidadaos podem solicitar o kit de autoteste de deteccao do virus, com a unica restricao de que sejam maiores de 18 anos e do sexo masculino. Trata-se, conforme consta no site oficial da prefeitura (2), de um projeto que visa a "expansao da testagem rapida e gratuita anti-HIV entre as populacoes mais vulneraveis a infeccao, ou seja, os jovens gays e outros HSH (3)".

    A despeito das consideracoes feitas por Foucault, o surgimento da epidemia de HIV-aids (4) em 1980 demonstra que junto as nocoes de casos individuais de sucessos e fracassos de determinada pratica de seguranca, a exemplo dos processos de incubacao, a nocao de doenca reinante, em 2015, ainda nao perdeu o seu lugar de referencia quando nos debrucamos sobre as injuncoes biopoliticas dirigidas as praticas sexuais, sobretudo aquelas consideradas perigosas. Persiste, com efeito, uma nocao de doenca global e macica relacionando-a a um modo de vida.

    Com o seu surgimento nos anos 1980, a epidemia fez com que se implementassem medidas biopoliticas dirigidas a protecao da vida, relacionadas nesse contexto a tecnicas de poder-saber sobre o sexo e a sexualidade. Objetivando conhecer as causas e os efeitos da sindrome, engendrou-se um aparato tecnico cujo esforco consistia em esgarcar os corpos, seus usos, seus prazeres, ate o ponto em que se encontraria no profundo da sexualidade algum tipo de verdade que poderia, de certa forma, se institucionalizar no modelo de um saber medico cientifico, uma clara atuacao do biopoder a partir do dispositivo da sexualidade (MISKOLCI, 2011; SIERRA, 2013). Nesse cenario, criaram-se medidas preventivas de higiene sexual e disseminaram-se campanhas pelo Brasil sobre prevencao de doencas relacionadas ao sexo.

    E nesse contexto de higienizacao sexual que a homossexualidade ganha maior visibilidade no conjunto das praticas sociais, e o movimento LGBT, a partir de aliancas e dialogos travados com o Estado e a academia, se reune em torno do combate a epidemia de aids, elegendo-o como uma de suas bandeiras nessa nova decada que se abre, juntamente as pautas identitarias dos anos 70 (MISKOLCI, 2011).

    Por estar associada ao comportamento sexual, facilmente a aids foi assimilada como uma das facetas da falha moral dos sujeitos homossexuais, resultado desse tipo de comportamento tido como prevaricacao e desvios no exercicio da sexualidade, reforcando, ao mesmo tempo, a necessidade do casamento heterossexual/monogamico como medida de contencao da epidemia.

    A visibilidade atingida pela homossexualidade nesse contexto de luta contra a aids se desenrola nos meandros das relacoes estabelecidas entre tres atores sociais: o movimento identitario LGBT, cuja nova bandeira estampava os interesses biopoliticos do Estado e que tinha na academia uma alianca circunstancial capaz de trazer uma sofisticacao cientifica das ciencias sociais aos objetivos de controle epidemiologico e de saude (MISKOLCI, 2011, p. 50). Assim, o preco a se pagar para se tornarem visiveis foi a sua fabricacao enquanto sujeitos que, alem de possuirem uma sexualidade perversa, encarnavam uma pratica sexual perigosa para o organismo social porque acometidos, no seu proprio modo de existir, por uma doenca de tipo reinante, a Aids.

    Segundo Miskolci (2011, p. 49), e tributaria das reflexoes feitas por Foucault a respeito do biopoder a compreensao desse movimento de repatologizacao da homossexualidade, a qual ha pouco havia sido retirada do rol de doencas mentais e sobre a qual se impingiam, a partir de entao, os efeitos de um poder que a constituiu, novamente, como doenca. A "epidemia inicial de HIV/aids teve o efeito de repatologizar a homossexualidade em novos termos contribuindo para que certas identidades, vistas como perigo para a saude publica, passassem por um processo de politizacao controlada" (MISKOLCI, 2011, p. 49). Esse fenomeno foi denominado por Larissa Pelucio (2009) de "sidadanizacao", vez que o processo de construcao da cidadania desses sujeitos se deu a partir de interesses estatais biopoliticos de carater epidemiologicos que culminou na criacao de identidades estigmatizadas.

    Mais de tres decadas se passaram depois da explosao e contencao da epidemia, depois mesmo de sua proliferacao a outros individuos independentemente de suas praticas sexuais (5), e no entanto essa correlacao existente entre a sindrome e a homossexualidade persiste sob a marca de uma doenca reinante. Para constatar esse fato, basta atentar-se para as formas como ate hoje a politica preventiva de DSTs dirige-se, sobretudo, aos naoheterossexuais, como e o caso da politica publica de saude de Curitiba aqui analisada.

    Essa atuacao estatal suscita algumas questoes: seu lancamento e motivo de comemoracao, na medida em que se mostra como mais uma ferramenta disponivel a populacao como forma de combate ao HIV, figurando, desse modo, naquele rol de conquistas dos direitos dos...

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