Disciplina ética dos arquitetos brasileiros

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas147-233
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III
disCipLina étiCa dos
aRquitetos bRasiLeiRos
1. A ética prof‌issional dos arquitetos
O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas
quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do
alvedrio?
Padre António Vieira,
Sermão de Santo António, 1654
O termo “ética” deriva do grego “êthos” que signica caráter, cos-
tume, comportamento, o que indica já seu objeto material: é um conhe-
cimento voltado à análise e determinação da “conduta moral do homem
(Jolivet). Como ensina Goredo, “na linguagem moderna, o adjetivo ético
designa a qualidade de ser concernente às atividades próprias do ser hu-
mano, ou seja, a seus atos deliberados e voluntários88. “Ética” e “moral são
termos largamente intercambiáveis, embora o primeiro termo tenha um
caráter prescritivo e o segundo um sentido subjetivo de introjeção das nor-
mas éticas – e sua obediência na vida concreta (e não serão poucas as obras
literárias que tratam de situações-limite em que o protagonista tem que
optar entre um comportamento ou outro, v.g., Madame Bovary). A ética
88 Segundo observa o Autor, professor da Fadusp, “sabem os lósofos que o “actus huma-
nus” é uma das espécies do “actus hominis” (ato do homem), que é todo e qualquer ato
produzido pelo ser humano, inclusive os atos não deliberados e não voluntários, como os de
respirar e de digerir” (Iniciação, p. 33).
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LEGISLAÇÃO PROFISSIONAL DA ARQUITETURA
prossional é um aspecto particular da ética geral que dirige e normaliza o
comportamento deliberado do homem no mundo de relações sociais, em
que aparece o exercício de uma prossão, qualquer que seja. Daí que seja
nomeada “deontologia” (do grego “deon” = dever e “logos” = conhecimento),
ou seja, ciência dos deveres prossionais objetivada (v. o Regulamento de
Deontologia da Ordem dos Arquitetos de Portugal, no próximo capítulo).
O termo “deontologia” foi popularizado a partir da obra póstuma de
Jeremy Bentham, publicada em 1834 (o Autor morrera dois anos antes),
que se chama Deontology or the science of morality. Iniciando com uma
discussão sobre a necessidade de aliança entre interesse e dever, a obra de-
fende que cada ação, centrada na moralidade, deve ser analisada na pers-
pectiva de ampliar ou restringir a “felicidade pública” (“public happiness”).
Diz ainda que a linha que separa o legislador do deontologista é clara: onde
a lei não atua com recompensas e punições é onde os preceitos da mora-
lidade começam a atuar. Assim, as condutas que não são apreciadas pelos
“tribunais do Estado” são consideradas pelos “tribunais da opinião, con-
siderando os deveres éticos dos agentes, vinculados sempre aos interesses
coletivos. Estes últimos tribunais foram institucionalizados em se tratando
de prossões liberais: os códigos de ética prossional têm verdadeira na-
tureza jurídica, quer dizer, são normas jurídicas no âmbito da respectiva
categoria, ainda que não emanadas do Estado. Como já decidiu a Corte de
Cassação italiana, a natureza jurídica das regras deontológicas implica que
sua violação é equivalente à violação da lei (sentença n. 8225). Tais códigos
integram, assim, o ordenamento jurídico do Estado para conguração de
um ilícito administrativo.
A ética geral assenta sobre um princípio básico central que é aquele
enunciado por Ulpiano: neminem laedere, ou seja, deve-se buscar o Bem e,
em consequência, não se pode prejudicar os outros, em qualquer circunstân-
cia. Trata-se do dever moral básico, o de agir retamente. A propósito, Kant
formou o imperativo categórico a reger a razão prática: “age de tal forma
que a norma de tua ação possa ser tomada como lei universal”. Assim, não
me é permitido enganar os outros porque o engano, a trapaça, o embuste, se
transformado em norma geral, conduziria à desagregadora “guerra de todos
contra todos” (bellum omnium erga omnes). Porém, ao lado das normas
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Disciplina ética Dos arquitetos brasileiros
éticas gerais, surgem normas éticas especiais para determinadas relações
sociais como a ética negocial, a ética sexual, a ética na política89, etc. Na
verdade, o princípio ético continua o mesmo, inalterado, em todas essas
situações. Ocorre que elas determinam a armação de subprincípios e nor-
mas próprias e especícas para cada contexto especíco.
Com inequívoco valor jurídico-normativo, os códigos de ética das
prossões liberais, de competência das respectivas corporações legalmen-
te constituídas, existem para disciplinar o comportamento prossional
dos agentes, que se caracterizam pela ampla possibilidade de escolhas na
prestação de serviços (autonomia) aos cidadãos. Mas entenda-se: escolha
quanto aos meios técnicos. O prossional age em função das nalidades –
desde que lícitas90 – denidas pelo contratante, mas é senhor da utilização
dos melhores meios, isto é, delibera acerca dos meios mais adequados na
consecução delas. Mesmo o Código Guadet, de 1895, já trazia restrições às
determinações do “cliente”, cujos interesses o arquiteto deveria defender:
Toutefois, l’architecte ne se prête pas à des opérations, même exigées par le
client, qui seraient de nature à léser les droits des tiers, ou seja, o arquiteto
não se dispõe a atividades, mesmo que exigidas pelo cliente, que poderiam
lesar os direitos de terceiros. A deontologia da prossão o impede.
Portanto, entre os meios de ação que o prossional dene não pode-
rá estar, v.g., a corrupção de funcionários públicos para obtenção da licença
edilícia porque isto tanto é uma falta ética quanto um crime, não podendo
se transformar jamais em lei universal. É o desvio da norma, sua vulnera-
ção. Se a avalição ética é determinada pelas escolhas feitas, o fato é que no
exercício da prossão o arquiteto precisa fazer as melhores escolhas con-
siderando certos “objetos” ou paradigmas de ação, que subordinam aque-
las escolhas a valores inerentes à prossão. Os deveres prossionais, como
89 Por exemplo, o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, de
2001, xa logo no art. 1º: “Este Código estabelece os princípios éticos e as regras básicas de de-
coro que devem orientar a conduta dos que estejam no exercício do cargo de deputado federal”.
90 Assim, o arquiteto não poderá ser punido pelo projeto de um condomínio urbanístico,
nada obstante o efeito deletério deste empreendimento no contexto citadino: mas é tido
como forma lícita de transformação do solo. Marcel Pagnol formulou uma “boutade” a res-
peito disso: “Convém desconar dos engenheiros. Eles começam pela máquina de costura e
acabam na bomba atômica”. A propósito, deve-se ler o pequeno conto do argentino Roberto
Arlt chamado “Um argentino ent re gângsteres”.

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