A disciplina das vendas casadas no direito antitruste: elementos para a caracterização da conduta como infraçao à ordem económica

AutorPaulo Eduardo Lilla
Páginas231-262

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1. Introdução

Algumas condicionantes contratuais impostas por fornecedores de bens e serviços para impedir que seus adquirentes comercializem com fornecedores rivais podem vir a se constituir infrações à ordem económica. Essas infrações, dentro da doutrina antitruste, são definidas como foreclosure restraints, uma vez que são capazes de provocar o "fechamento" ou obstrução do mercado, de modo a restringir a livre concorrência.

As foreclosure restraints são práticas restritivas verticais, por se tratar de restrições impostas por ofeftantes de bens ou serviços - sejam eles produtores, fornecedores ou distribuidores - sobre mercados verticalmente relacionados. As restrições verticais, conforme disciplina a Resolução 20/1999 do CADE, são "restrições impostas por produtores/ofertantes de bens ou serviços em determinado mercado (de origem) sobre mercados relacionados verticalmente - a montante ou a jusante - ao longo da cadeia produtiva (mercado alvo)". Em outras palavras, trata-se de restrições impostas no mercado a montante para restringir a concorrência no mercado a jusante.1

As vendas casadas, os acordos de exclusividade e de reciprocidade são exemplos clássicos de práticas causadoras dos efeitos de fechamento do mercado. Essas restrições verticais impedem que fornecedores concorrentes comercializem com de-

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terminado adquirente, seja ele um distribuidor ou consumidor final. Isso ocorre porque o fornecedor, impondo uma condicionante contratual, obriga o adquirente a não negociar com outros fornecedores rivais. Estes, por sua vez, acabam sendo excluídos do mercado.

Por se revestirem em condicionantes contratuais restritivas, essas práticas são também conhecidas como "negociações compulsórias", que, para o professor Ca-lixto Salomão Filho, consistem na "determinação das condições essenciais do negócio por uma das partes contratantes, em decorrência da inexistência de alternativa economicamente viável para a outra parte".2 Como bem lembra o eminente Professor, a negociação compulsória pode ocorrer tanto na imposição de um negócio, como ocorre nas vendas casadas e nos acordos de reciprocidade, quanto na negativa de conclusão de um negócio, como nos acordos de exclusividade e na recusa de venda.

É importante ressaltar que, tal como em qualquer restrição vertical, o agente económico que impõe esse tipo de prática deve deter poder de mercado suficiente no mercado de origem, a montante, de modo a que seja possível coagir o adquirente a aceitar condicionantes contratuais restritivas e, dessa forma, reduzir a concorrência no mercado alvo, a jusante. Caso contrário, na ausência de poder de mercado do fornecedor, bastaria que o adquirente procurasse fornecedores alternativos capazes de oferecer o mesmo tipo de produto ou serviço.

O presente estudo tem como objetivo a análise da prática de vendas casadas, que é uma das restrições verticais mais notórias a provocar o fechamento do mercado. Mais precisamente, o trabalho concentra-se no exame dos requisitos essenciais para a configuração das vendas casadas como ilícito antitruste, ou seja, na verificação dos elementos que poderiam auxiliar as autoridades de defesa da concorrência na análise dos indícios para a caracterização da prática de vendas casadas como infração à ordem económica.

Na jurisprudência norte-americana encontramos solo fértil para a verificação desses elementos. Considerando que o tema foi pouco explorado pela doutrina e jurisprudência pátria, os elementos de análise presentes na jurisprudência norte-americana poderiam servir como rica fonte de pesquisa e referência para o nosso direito da concorrência, principalmente no que concerne à investigação das vendas casadas pelos órgãos antitruste brasileiros (SDE, SEAEeCADE).

Dessa forma, o trabalho será dividido em duas partes. Na primeira, trataremos da definição das vendas casadas sob a ótica antitruste, apontando conceitos jurídicos e teorias económicas tradicionais. Na segunda parte, a partir do caso "Jefferson Parish", julgado pela Suprema Corte norte-americana, abordaremos os elementos essenciais para a caracterização das vendas casadas como ilícito antitruste.

2. Definição das vendas casadas sob a ótica antitruste
2. 1 Definição jurídica

A prática de vendas casadas - também conhecida como tying arrangements - pode ser definida como um acordo restritivo vertical pelo qual um vendedor ou prestador de serviço se compromete a vender um bem ou a prestar um serviço sob a condição de que o comprador também adquira outro bem ou serviço.3 Geralmente a prática envolve dois produtos: o produto principal, ou tying product, e o produto vinculado, ou tied product.4 Pode-se afirmar, portan-

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to, que a prática de vendas casadas consiste em condicionar a compra do produto principal à aquisição do produto vinculado.

Em tese, praticamente todos os produtos ou serviços podem ser divididos em componentes menores capazes de serem vendidos separadamente.5 No entanto, nem sempre é economicamente viável a venda de componentes separados ao invés da venda do produto inteiro. É difícil imaginar, por exemplo, a venda de um carro sem as rodas, a venda de um casaco sem botões, de uma mesa sem as gavetas ou de um microcomputador sem seu monitor, uma vez que os consumidores desejam adquiri-los por inteiro, e não em partes separadas. Além disso, a economia de custos de fabricação e venda de produtos inteiros reflete significativamente no preço final em benefício do adquirente, o que não ocorre com a venda do produto em componentes separados, que resulta quase sempre em custos adicionais. Ora, dois produtos podem ser embalados em apenas um pacote e negociados em conjunto, sendo que produtos separados demandam duas embalagens distintas e negociações distintas. É claro que estes custos adicionais, assim como outros custos que também poderão ser incorridos, serão repassados aos adquirentes no preço final que lhes é cobrado.

Por outro lado, se fosse conferido aos consumidores o direito de adquirir todos os produtos em componentes separados, o mercado entraria em colapso, conforme explica Hovenkamp: "The market would come to a standstill, however, if the antitrust laws gave every customer a legal right to atomize his purchases as much as he chooses".6

É claro que pode existir um consumidor individual interessado em adquirir um carro sem as rodas, por preferir, por exemplo, adquirir rodas especiais de um determinado fabricante. No entanto, esse seria um caso excepcional, pois normalmente se adquirem carros com rodas. Se o fabricante de carros fosse obrigado a vender alguns carros sem rodas, para satisfazer clientes específicos, o que faria com o estoque de rodas que se formaria em decorrência disso? Certamente, os custos incorridos em retirar essas rodas, armazená-las e procurar adquirentes para as mesmas seriam repassados a todos os consumidores. Assim, ao beneficiar um consumidor marginal, o fabricante estará prejudicando o interesse de todo um grupo de consumidores que deseja adquirir o carro por inteiro, com as rodas. Uma política formulada no sentido de maximizar o bem-estar dos consumidores não deverá, necessariamente, assegurar a satisfação de cada um dos consumidores individualmente. Ao contrário, deve concentrar-se no bem-estar dos consumidores de forma geral.

Não obstante, o grande desafio das autoridades antitruste é identificar as situações em que o casamento ou vinculação de produtos é resultado de uma prática ilícita de vendas casadas, a prejudicar a livre concorrência e os consumidores. Contudo, diferenciar a vinculação lícita e eficiente daquela ilícita e ineficiente não é tarefa das mais fáceis.

A professora Paula Forgioni, ao procurar uma solução á essa indagação, afirma que, "embora essa seja uma questão difícil de ser resolvida, na maioria das vezes podemos assumir que estaremos diante de apenas um produto quando não houver procura compensatória para ambos separados,

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ou seja, quando não for proveitosa para o adquirente padrão a compra de uma coisa sem a outra".7

Para a eminente Professora, se a procura pelo produto principal for independente da procura pelo produto vinculado, estaremos diante de potencial prática de venda casada. Seguindo essa lógica, carros e rodas podem ser considerados apenas um produto, pois a grande maioria dos consumidores deseja adquiri-los em conjunto.

Ademais, uma venda casada ilícita será caracterizada a partir do momento em que o comprador, para adquirir um produto, for obrigado a adquirir um outro que não deseja, ou seja, quando for coagido a fazer algo que não queira fazer, para que possa adquirir um determinado produto. Portanto, a venda casada resulta na redução das possibilidades de escolha do adquirente por meio de uma coerção imposta pelo fornecedor.

Pode-se afirmar que é o poder de mercado do fornecedor no mercado do produto principal que lhe permite condicionar a venda desse produto à aquisição do produto vinculado. Como já mencionado anteriormente...

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