Diretivas antecipadas da vontade através do testamento vital: oportunidade de humanização da morte

AutorAnna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques, Ana Claúdia Albuquerque de Almeida
Páginas9-27
Diretivas antecipadas da vontade através do testamento vital: oportunidade de humanização d a morte
Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 5, n. 10, p. 9-27, jul./dez . 2014
16
[...] o conjunto de propriedades e qualidades que fazem com que organismos que dela
dispõem se mantenham em atividade manifestando funções orgânicas, cresçam,
reajam a estímulos, adaptem-se ao meio em que estão, se reproduzam. Vida designa,
também, a existência, o lapso temporal em que tais atividades podem ser constatadas.
(2002, p. 69).
Como se vê, o conceito de vida humana, bem precioso e protegido juridicamente,
transcende o simples fato de o coração pulsar e fazer o sangue circular pelo corpo. A vida
humana obedece a um ciclo natural, que finda quando o indivíduo percebe que este foi
devidamente cumprido, sem que se prorrogue para além do tempo, a ponto de ameaçar a sua
dignidade. Quando a vida se torna pesada e surgem questionamentos sobre o quanto já se
viveu, fazendo da existência um verdadeiro martírio, é porque a dignidade já foi ofendida
(CABRAL, 2007).
O problema consiste em reconhecer a partir de que ponto a vida se torna tão inviável
e porque não dizer miserável que não vale mais a pena insistir em sobreviver. Mas só quem
pode determinar até onde é suportável existir e ainda optar pela vida ao invés da morte é o
próprio “sobrevivente” crônico, manifestando-se no gozo de suas faculdades mentais,
cumprindo o preceito da livre disposição de seus direitos existenciais. Deve-se,
primeiramente, aceitar e, depois, respeitar o desejo do doente, permitindo-lhe “viver” o
processo da morte da maneira que lhe convier, desde que mantida a sua dignidade.
Aliado à vida está o princípio da qualidade de vida, que assevera a existência de um
valor para a vida e é empregado se esta é munida de certo número e grau de predicados
históricos, sociais e culturais erigidos e acolhidos pelo próprio vivente. A oposição ao
princípio da qualidade de vida está ligada à possibilidade de atitudes incoerentes, causadoras
de dores intoleráveis, apenas para alimentar uma sobrevida que na realidade é mais uma
punição do que um presente. O que se deve questionar, em relação ao princípio da qualidade
de vida, é o verdadeiro conceito de existência que vale a pena ser vivida e a quem compete
decidir sobre tal mérito. O titular da vida é quem dispõe sobre como viver ou quando morrer.
Outro princípio que vem fundamentar o testamento vital quando se leva em
consideração as circunstâncias do doente crônico que se encontra em estado grave e incurável,
privando-se de aptidões humanas básicas é o da dignidade da pessoa humana. Disposto no
artigo 1º da CF/88, esse valor regula não o ordenamento jurídico pátrio, mas o
comportamento de todos os cidadãos brasileiros. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet,
dignidade da pessoa humana seria:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz
merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
Anna Valéria de Miranda Araújo Cabral Marques Ana Cláudia Albuquerqu e de Almeida
____________________________________________
Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 5, n. 10, p. 9-27, jul./dez . 2014
17
assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos,
mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida. (2011, p.
73).
Nota-se, pela afirmativa supracitada, que os princípios fundamentais se dobram à
dignidade da pessoa humana, que deve servir de parâmetro hermenêutico a todos os outros
constantes no ordenamento pátrio. É a dignidade da pessoa humana que deve ser apreciada
prioritariamente e jamais contrariada por qualquer outro bem jurídico, sob pena de ferir uma
cláusula geral de tutela da personalidade (CABRAL, 2007).
Ora, se a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado democrático
de Direito, supõe-se que deva ser garantida indistintamente no começo, no meio e no fim da
vida de qualquer cidadão. Mais, se a vida precede a morte e se a Constituição Cidadã prega o
direito a uma vida plena, digna, salutar, sem sofrimentos extensos, subtende-se que a
dignidade alcança também a morte, afinal, viver em estado deplorável, agonizando e
definhando a olhos vistos não apresenta traço algum de dignidade e vai de encontro ao artigo
5º, III, da CF/88, que diz que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano
ou degradante”.
Assim como o direito à vida é ferrenha e constitucionalmente defendido, igualmente
deveria ser o direito à morte, pois se é dado ao indivíduo liberdade para viver como quiser,
respeitando sua individualidade, pessoalidade e dignidade, da mesma forma deveria ser
permitido decidir sobre sua própria morte. A vida é um direito, um bem que pode sofrer
limitações em favor de outro que dele discordar, nunca um dever a ser suportado e mantido a
qualquer preço.
Intimamente ligado ao princípio da dignidade humana e, consequentemente, inserido
no rol dos direitos fundamentais, está o princípio da autonomia da vontade, constituindo, do
mesmo modo, em cláusula pétrea, ou seja, direito constitucional que é amparado e protegido
de forma particular.
Define-se como autônomo o indivíduo que atua desimpedidamente conforme um
plano próprio, de modo similar a um Estado livre que governa seu território e suas políticas.
Sendo esse indivíduo um paciente terminal, sua autonomia surge quando lhe é asseverado o
direito de manifestar previamente sua opinião acerca dos tratamentos a que deseja ou não ser
submetido.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT