Direitos sexuais como um direito humano

AutorElida Séguin
CargoDefensora Pública. Presidente do Instituto Brasileiro de Advogados Públicos (IBAP). Doutora em Direito Público, Professora Adjunta da UFRJ (aposentada). Professora Convidada da Fundação Getúlio Vargas (FGV), da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP).
Páginas51-74

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Introdução

Existem certos assuntos que são cuidadosamente evitados como tabus sociais, entre eles destacam-se a morte e a sexualidade humana. Lembro que,Page 52quando escolhi “Cemitério” como tese de doutorado2, fui objeto de muita brincadeira. Em minhas pesquisas de Biodireito deparei-me com alguns aspectos da sexualidade: o crime de abortamento, a dificuldade\impossibilidade de procriar, as cirurgias de mudança de sexo, crianças com sexo indefinido, discriminação e preconceito que sofrem os que têm orientação sexual alternativa.

Assim resolvi falar sobre direitos sexuais como um Direito Humano. Não abordarei a orientação sexual, pois a enxergo mais sob a ótica do preconceito social que gradativamente está sendo superada como pontua o reconhecimento dessas uniões para concessão de benefícios previdenciários a servidores públicos. Entendo que a sexualidade deve ser enfocada sob o prisma dos Direitos Humanos, dentre os vários aspectos possíveis, escolhi analisar a indefinição e a redefinição de sexo passando pelo abortamento que vejo como uma forma de discriminação de mulheres pobres.

Se a sexualidade deve ou não ser controlada e qual a melhor técnica, é questão ética na qual avultam estudos multidisciplinares, com a problematização dos fundamentos e da axiologia de leis e da ética. Variados e provisórios são os valores que um grupo adota, induzindo a meditar sobre a eticidade3 e temporariedade de determinadas condutas e o papel desempenhado por lidadores do Direito como agentes de mudança social.

A sexualidade integra a personalidade humana. Seu desenvolvimento depende da satisfação de necessidades básicas tais como desejo de contato, intimidade, expressão emocional, prazer, carinho e amor. Ela é construída através da interação do indivíduo com estruturas sociais. O total desenvolvimento da sexualidade é essencial para o bem estar individual, interpessoal e social.

A primeira vista pode parecer que só existe um sexo: ledo engano. São vários. Tem-se o genético, que não é modificado com fármacos nem cirurgia. O gonádico é relativo as gônadas. O anatômico está ligado a externalidades, como a genitália se apresenta. O hormonal está ligado a produção natural de hormônios. O legal é o que consta do assentamento de nascimento. O psico-social está vinculado à forma como a pessoa se insere socialmente, como ela se enxerga. O de criação refere-se ao papel social que lhe foi ensinado a desempenhar desde a mais tenra idade.4

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Os direitos sexuais são direitos humanos universais baseados na liberdade inerente, dignidade e igualdade para todos os seres.

Padrões de saúde sexual são estabelecidos pela sociedade, que determina os ritos de iniciação, de passagem e a clivagem entre o “nós” e o “eles”. Hodiernamente a Comunidade Internacional, em nome dos Direitos Humanos, questiona regionalismos que provocam danos para a saúde feminina, inclusive com mutilações.5 Saúde sexual é um direito fundamental e um direito humano básico.

Interessante registrar que o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI, instituído pela Lei nº 11.530 de 24.10.2007, estabelece como diretriz a promoção dos direitos humanos, considerando as questões de gênero, étnicas, raciais, geracionais, de orientação sexual e de diversidade cultural.

1 Direitos humanos

O rol das garantias que integram a lista dos Direitos Humanos aumenta com a complexidade social, desdobrando alguns itens. Muitos destes acréscimos foram agasalhados em textos constitucionais, transmudados em “garantias individuais”. É a constitucionalização dos Direitos Humanos.

Seu conteúdo embute os conceitos de dignidade, de liberdade, de igualdade e guarda características diferenciadoras de outros direitos como a irrenunciabilidade, a irrevogabilidade, a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a inviolabilidade, a indivisibilidade, a universalidade, a interdependência e a complementariedade, por serem elementares a uma vida digna.

A todo direito corresponde uma garantia que o assegure e toda garantia deve corresponder um remédio que a torne concreta. Rui Barbosa apontava os direitos como normas declaratórias (caput do art. 5º), e as garantias como normas assecuratórias (inciso LXVI do art. 5º), apesar da Carta Magna não fazer a distinção.

Se, além destes direitos terem sido constitucionalizados, constarem de norma infraconstitucional, tem-se os direitos da personalidade como prerrogativas primárias, reconhecidas como essenciais para densificar o desenvolvimento humano, a dignidade da pessoa e necessários à manutenção da paz e do equilíbrio no convívio social. Eles estão arrolados, sem estarem exauridos, no caput do art. 5º e no inciso III, do art. 1º, III, ambos da CF. Estes direitos são exercidos sobre bensPage 54imateriais ou incorpóreos e podem ser assim exemplificados: o direito à vida, à liberdade, à manifestação do pensamento, à imagem, ao nome, à privacidade, à integridade do corpo, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à opção sexual, etc.

Sexualidade é o conjunto de caracteres próprios de cada sexo, sejam eles físicos ou psicológicos, que se expressa no comportamento dos indivíduos, de acordo com a construção cultural (os papéis sexuais) e as possibilidades de orientação sexual. Ela não está concentrada apenas nas características físicas, mas no todo, na gestalt. Para o total desenvolvimento da sexualidade são essenciais:

- o bem-estar individual, interpessoal e social;

- o acesso à informação e à educação sexual.

A sexualidade é tema de constante preocupação filosófica, social, religiosa e jurídica. É objeto de disciplina repressiva das religiões e do Poder Público, que determinam o certo e o errado nas práticas sexuais, inclusive a orientação sexu al.6

Para o pleno desenvolvimento humano, a saúde sexual desempenha papel preponderante, sendo também um direito da personalidade, posto que uma conquista social e a sua extensão a todos representa um ideal de Justiça Social.

2 Princípio da dignidade e o conceito de saúde

O homem deve ser respeitado em sua dignidade, em seu valor de fim e não de meio, pois a “dignidade da pessoa humana, que, como consectário, impõe a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e sua realização existencial”.7 Nossa Carta Magna elevou a tutela e promoção da pessoa humana a um valor máximo do nosso ordenamento, estatuindo que a dignidade do homem é inviolável (art. 1º), sendo mola propulsora da intangibilidade da vida humana, daí defluindo como consectários naturais como :

- respeito à integridade física e psíquica8 das pessoas;

- admissão da existência de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver9, e

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- respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade.

O Ministro Gilmar Mendes, em 4.10.2003, no HC 82.969-PR (STF, 2ª Turma) lembrou que o princípio da dignidade da pessoa humana proíbe “o uso ou a transformação do ser humano em objeto de degradação dos processos e ações estatais, pois seria dever estatal respeitar e proteger o indivíduo contra diversos tipos de ofensas e humilhações”. Uma criança com uma identidade sexual ambígua está em permanente estado de vitimização e despida de sua dignidade.

O Tribunal Constitucional de Portugal afirmou que “a idéia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdo concreto – nas exigências ou corolários em que se desmultiplica – é algo puramente apriorístico, mas que necessariamente tem de concretizar-se histórico-culturalmente” (Acórdão 90-105-2, de 29.03.1990, rel. Bravo Serra).

O Tribunal Constitucional da Espanha determinou que “a dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”.10 Afirmativa perfeitamente cabível no respeito aos direitos sexuais.

A dignidade não abrange apenas o direito à vida, mas também o direito à saúde, na forma do art. 196, que adotou o conceito de “saúde integral”. A Lei nº 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde), no art. 3º, ao definir saúde enumera fatores externos, limitando-se a garantia do bem-estar físico, mental e social, e sem saúde sexual não pode haver bem-estar mental e social. A dignidade correlaciona-se com à autodeterminação, que é impossível de ser alcançada quando os direitos sexuais não foram respeitados, quando a essência da identidade está sendo questionada.

Na saúde sexual, não basta ter um diagnóstico de uma desordem, é necessário receber o tratamento cirúrgico, clínico e farmacológico para a patologia, ou seja, o tratamento integra o Princípio da Dignidade.11

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3 Direitos sexuais

A Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, reconheceu os direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos, apesar da lei não ser expressa sobre os direitos sexuais ou reprodutivos.12 Facilmente se constata uma falência de Políticas Públicas garantidoras destes direitos impondo que eles sejam obtidos judicialmente.

Para que o ser humano atinja seu pleno desenvolvimento, ele precisa que necessidades básicas, que extrapolam as condições físicas, sejam supridas, nelas incluídas o carinho, a auto-estima, o desejo de contato, a intimidade, a expressão emocional, o prazer sexual e o amor. Por integrar os ritos sociais, a sexualidade humana é objeto de tabus variados, mas, como parte da personalidade, é construída através da interação entre o indivíduo e as estruturas sociais.

Durante o XV Congresso Mundial de Sexologia, ocorrido em Hong Kong (China), entre 23 e 27 de agosto de 1998, a Assembléia Geral da WAS – World Association for Sexology, aprovou as...

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