Direitos reais, direitos pessoais; direitos absolutos e direitos relativos - nominalismos, realismos e conceitualismos em duas dicotomias do sistema jurídico de Augusto Teixeira de Freitas

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas61-117

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Estudo previamente publicado na Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo 19 (2007), pp. 77-108.

1. A importância de Augusto Teixeira de Freitas na história do direito brasileiro

Augusto Teixeira de Freitas é uma das personagens da história do direito brasileiro que se projeta para além dos limites do ramo da ciência jurídica a que especificamente se dedicou; embora sua linha de atuação – seja como legislador, advogado ou mesmo pesquisador – tenha se mantido sempre voltada ao que comumente se designa pela expressão direito privado, o decurso do tempo fez com que sua obra ganhasse não apenas uma projeção internacional, como inclusive uma dimensão histórica singular1.

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Ou seja, é possível analisar a produção jurídica de Augusto Teixeira de Freitas – ao menos – sob uma dupla perspectiva: a observação do civilista estará sempre mais impressionada com aquela que foi a obra responsável pela projeção internacional do autor – vale dizer, o Esboço de Código Civil. Entretanto, o olhar atento do historiador revelará a importância central de sua Consolidação das Leis Civis no panorama de gestação de um autêntico sistema de direito civil luso-brasileiro2.

Para que tal preferência possa ser justificada, faz-se necessária uma incursão preliminar que remonte ao próprio período anterior à promulgação das primeiras Ordenações do Reino de Portugal (as assim chamadas Ordenações Afonsinas): é aí que poderemos divisar a formação de um ambiente jurídico contra o qual vão se dirigir as reformas pombalinas da aplicação e do ensino do direito, arsenal metodológico

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(e ideológico) responsável pela conformação do pensamento jurídico do autor3.

2. O ambiente de formação intelectual de Augusto Teixeira de Freitas

A formação intelectual de Augusto Teixeira de Freitas se dá em um ambiente jurídico iluminista: a matriz intelectual em que está envolta sua produção científica é jusracionalista – a despeito de respeitáveis posicionamentos contrários – e toda ela se justifica como um refiexo de medidas promovidas durante o reinado de D. José I (mais especificamente durante o Consulado do Marquês de Pombal) voltadas à repressão sistemática de práticas incrustadas nas realidades acadêmica e forense lusitanas4.

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O surgimento do Estado português assinala um período de paulatina reformulação do sistema das fontes do direito reinícola: embora em um primeiro momento fosse acentuado o papel desempenhado pelas cúrias, cortes e forais (breves e extensos), o reinado de D. Afonso III assinala o início de um processo de recepção do direito romano justinianeu, particularmente no que concerne à centralização da produção legislativa sob as mãos do monarca5.

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Entretanto, a infiuência do direito romano justinianeu não se deu exclusivamente sob o ponto de vista formal; várias foram as regras de conteúdo que repercutiram de modo decisivo no espírito jurídico português posterior à recepção assinalada na metade do século XII. Tal recepção, que em um primeiro momento foi implementada à custa das fontes castelhanas (Nueve tiempos de los pleitos, Flores del Derecho, Fuero Real e Siete Partidas), já por volta de 1361 sofria profunda reformulação, perceptível pela análise de quatro documentos históricos de relevância indiscutível: a Provisão de
D. Pedro I
(de 13 de abril de 1361), o Alvará de 19 de Maio de 1425, a Carta de Bruges e a Carta Régia de 18 de Abril de 1426. Por meio do estudo de tais documentos é possível entrever uma gradual superação do acesso mediato às fontes justinianéias – relegando-se os textos castelhanos a uma posição secundária – em detrimento do aproveitamento cada vez mais direito do Codex, da Glosa de Acúrsio e dos Comentários de Bártolo6.

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Tal situação somente iria se estabilizar com a promulgação das sucessivas Ordenações do Reino de Portugal (Ordenações Afonsinas, 1446; Ordenações Manuelinas, 1521; Ordenações Filipinas, 1603): cada uma a seu modo – e com peculiaridades extremamente relevantes que no momento não convém assinalar – disciplinou o recurso às Leis Imperiaes e aos Santos Cânones como mecanismos de superação das inúmeras lacunas do Livro IV (dedicado ao que modernamente se designa por direito civil) de cada uma das coletâneas supra referidas7.

A disciplina da aplicação do direito subsidiário articulada nos diversos textos tinha em mira, em primeiro lugar, a afirmação da primazia do direito pátrio em relação a todas e quaisquer outras fontes de direito estrangeiro; onde leis, costumes ou estilos pátrios dispunham, deveria cessar toda a aplicação de direito estrangeiro. Entretanto, se não houvesse disciplina reinícola, estava autorizado o intérprete a lançar mão do direito justinianeu (quando a matéria não envolvesse pecado) ou do direito canônico (caso a aplicação do direito romano implicasse a prática de pecado)8.

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Em algumas situações, todavia, nem os textos romanos eram suficientes ao esclarecimento da controvérsia articulada em juízo: hipótese na qual poderiam os intérpretes prosseguir em sua investigação, indagando sobre a posição de Acúrsio (Glosa) ou Bártolo (Comentários) a respeito do tema; persistindo a lacuna, o feito deveria ser remetido ao monarca, com o fito de que a questão fosse solvida pela chancelaria real. Essa, pois, a disciplina geral estabelecida pelas Ordenações do Reino de Portugal para a questão da aplicação do direito subsidiário9.

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Postas de parte as peculiaridades de cada uma das disciplinas legais acima referidas, observa-se que a partir da primeira edição das Ordenações Manuelinas (1514) houve reformulação quanto ao recurso ao direito romano (em caráter subsidiário) por meio da criação de duas novas regras: em primeiro lugar, foi atribuída uma razão positiva para o recurso ao direito justinianeu – ou seja, o emprego das Leis Imperiais se fazia em virtude da boa razão que se lhes reconhecia –; além disso, a utilização de Acúrsio e de Bártolo somente se justificava caso não tivessem sido reprovados pela communis opinio doctorum que a respeito da questão se tivesse pronunciado10.

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Esses dois elementos apresentarão considerável relevância no desenvolvimento posterior do direito lusitano (e brasileiro por via refiexa): a boa razão será a justificativa para a reformulação metodológica promovida ao longo da segunda metade do século XVIII; a communis opinio doctorum será o elemento de aferição do direito romano aplicável, in casu, a cada uma das hipóteses em que se revelasse omissão das fontes do direito pátrio11.

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Embora a primazia do direito pátrio jamais tivesse sido posta em dúvida em território lusitano, controvérsia houve entre os principais jurisconsultos reinícolas quanto à compatibilidade do direito romano com a “razão natural” que lhe servia de fundamento: tanto se podia encontrar quem defendesse o estudo caso a caso da compatibilidade do direito romano com a boa razão, como também havia quem considerasse o direito justinianeu “em bloco” como corporificação da ratio scripta (e em verdade essa posição acabou por prevalecer)12.

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Contudo, o infiuxo do humanismo em Portugal rendeu um precioso fruto quanto a esse específico particular: a aferição da communis opinio doctorum haveria de ser feita mediante a aplicação de um critério misto; embora não pudesse prevalecer a verior opinio sobre o critério do número, somente deveriam ser considerados, para a determinação da opinião comum, os autores que houvessem se dedicado ex professo à matéria discutida13.

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Esse complexo sistema de estabelecimento do direito aplicável às matérias não disciplinadas pelo direito pátrio resultou em um panorama intrincado, no qual a incerteza quanto ao pronunciamento dos tribunais decorria, em larga medida, da aplicação de um critério puramente quantitativo para a definição da communis opinio doctorum – muito embora se defendesse o contrário nas academias de Leis e Cânones14.

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Diante de um tal estado de coisas Luís António Verney publica, em 1746, uma coleção de cartas dirigidas, indiretamente, a Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal), propugnando reformas relacionadas ao modelo de aplicação do direito vigente e à pedagogia jesuíta implementada na Universidade de Coimbra. Uma vez recebidas as críticas, deu-se início então ao processo de reformulação do modelo vigente, primeiramente com a edição da Lei de 18 de Agosto de 1769 (Lei da Boa Razão) e poucos anos depois com a reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772)15.

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Embora alguns autores caracterizem o jusracionalismo português como uma época de voluntarismo e racionalismo, parece que outras tantas características formais possam ser extraídas do período analisado – as quais resultam evidentes de um estudo escrupuloso da Lei de 18 de Agosto de 1769 e dos Estatutos da Universidade de Coimbra de 1772 – dentre as quais pode-se destacar: a infiuência da escola de direito natural; o uso moderno do direito romano justinianeu; a aversão ao critério puramente numérico de aferição da communis opinio doctorum; a hostilidade ao direito romano justinianeu contrário ao direito natural e ao direito das gentes; a revalorização do direito nacional; o apreço pelos estudos desenvolvidos pela doutrina estrangeira; o...

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