Direitos Humanos na Modernidade Avançada: o Trabalho na Era Cibernética

AutorGrijalbo Fernandes Coutinho
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho da 10ª Região. Ex-presidente da Anamatra, da Amatra 10 e da ALJT - Associação Latino-Americana de Juízes do Trabalho
Páginas35-45

Page 35

Introdução

Nas últimas quatro décadas o tempo parece ter andado em uma velocidade impressionantemente fugaz, como se o relógio do mundo tivesse agora abolido frações menores de medição dos espaços entre uma hora e outra ou acionado pelo método digital, por enquanto, eficaz rotação permanentemente acelerada para ultrapassar e eliminar o que fica obsoleto da noite para o dia, o que se torna velho antes de atingir a puberdade, o que se revela incompatível com o ritmo da modernidade avançada. Essa sensação muito próxima da realidade concreta, do cotidiano das pessoas, decorre, por um lado, das mudanças sociais, políticas e culturais vistas a partir dos anos 1960 e, por outro, da revolução cibernética responsável pela introdução de outros paradigmas em todas as áreas do conhecimento e comportamento humanos. Segundo Menelick de Carvalho Netto, na "sociedade moderna, complexa, o tempo é sempre e cada vez mais raro, mais curto, posto que apropriável, qualificável e vendável, redutível, portanto, a cálculos quantitativos na composição de projetos, investimentos e custos"1.

Inegavelmente, há uma arrasadora revolução microeletrônica em curso, para o bem e para o mal, para ser utilizada de forma altamente proveitosa ou para servir como objeto de envolvente alienação travestida de modernidade democrática. Muitas vezes não conseguimos nos imaginar sem os recursos da cibernética, hoje utilizados com tanta frequência e naturalidade. O aparelho telefônico celular multifuncional e os minúsculos computadores não apenas integram a rotina diária dos fanáticos inter-nautas, como também pautam várias de suas ações, ao deixá-los conectados ao mundo virtual o tempo todo, quando não os submetem aos seus caprichos menos nobres consistentes na hipervalorização do fútil bastante estimulado no mundo em rede.

Para as relações de trabalho fabris, por exemplo, desde o ingresso da eletricidade, do petróleo, da química pesada e da mecânica de previsão como

Page 36

fundamentos da Segunda Revolução Industrial (1870-1890), não se via nada tão extraordinariamente transformador como o uso largo do computador e do potencial da engenharia robótica no processo produtivo.

Com a eletrônica ainda em puro estado meta-morfósico, anuncia-se que a automação empresarial logo dispensará o trabalho humano no âmbito da nova logística do capital ou, no mínimo, reduzirá significativamente a sua relevância, de modo que o Direito do Trabalho, por via de consequência, também desaparecerá do cenário jurídico.

Na presença deste quadro radicalmente alterado nas últimas décadas, o presente ensaio centra o seu olhar crítico para o mundo do trabalho estruturado nos avanços cibernéticos aparentemente inesgotáveis e no exponencial crescimento das formas de fragmentação do processo produtivo em rede, bem como as suas consequências para o Direito do Trabalho e para a vida em sociedade.

Persegue-se, assim, avaliar de maneira crítica a influência dos sofisticados incrementos da micro-eletrônica, em perfeita sintonia com a repartição da cadeia produtiva, sobre as novas relações de produção, bem como os seus propósitos e resultados mais concretos para a consolidação ou enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.

Blade Runner2 (1982), filme dirigido por Ridley Scott, aqui escolhido para tensionar a relação entre extraordinário fenômeno tecnológico e valor humano fundamental, consegue realizar de forma magistral o encontro da cibernética com o trabalho desenvolvido sob a realidade do poder burguês ancorado na engenharia da informação. A referida obra de arte marcada pelo futurismo científico interage com o destino de uma das maiores conquistas civilizatórias do século XX, qual seja, o Direito do Trabalho como marco da sociedade capitalista menos absoluta, mais contida no seu ímpeto liberal em nome da efetividade dos Direitos Humanos e da justiça social. Daí a pertinência em observar as mensagens emitidas por Blade Runner no início dos anos 1980 a respeito do novo mundo do trabalho, hoje assim visto com meridiana clareza para que, ao final do trabalho monográfico, sejam avaliados criticamente o papel e as alternativas do Direito em tempos fugazes e efêmeros próprios da época da Terceira Revolução Industrial.

1. A revolução cibernética retratada em Blade Runner como configuradora de um novo modelo de relações de trabalho

Em 2019, Los Angeles carregada de ambiguidades da era do espaço-tempo adaptáveis às necessidades do sistema econômico, é o centro dos conglomerados da engenharia genética utilizada para o humano magnata penetrar planetas mais seguros, a exemplo do que ocorre com a atividade desenvol-vida pela corporação Tyrrel, assim como também é essencialmente a periferia social reinante em toda a cidade cercada por alguns luxuosos prédios espelhados e iluminados.

A Tyrrel Corporation cuida da criação genética de seres humanos especiais, aptos a manejar tarefas por demais complexas em outro planeta no contributo ao desenvolvimento econômico na terra. Denominados de replicantes, essas cópias humanas mais do que perfeitas são produzidas em pequenas fábricas compartimentadas, altamente especializadas, cada uma delas responsável pela concepção de parte do corpo para além de humano dos sujeitos com imensas obrigações e nenhum direito. Como oferecem riscos aos humanos (criadores e exploradores de seus serviços), por serem supostamente instáveis emocionalmente, agressivos e, diante da notória superioridade física e intelectual, os replicantes da espécie Nexus-6 não podem frequentar a terra, nem devem gozar de qualquer tratamento distinto daquele oferecido aos robôs normais, à exceção do prazo limitado de quatro anos de vida.

Dada a semelhança com os seres humanos, fruto do processo revolucionário da engenharia genética, os replicantes deles herdaram sentimentos como amor, ódio, raiva, solidariedade, compaixão, revolta e união de forças para eliminar, entre outras ofensas, as condições degradantes de trabalho, o fator descartabilidade presente no curto prazo de vida deles e a existência de algozes os quais desfrutam confortavelmente do quadro opressivo objeto de extrema revolta.

Sob a liderança de Roy, personagem de Rutger Hauer, três outros replicantes fogem para provocar uma rebelião em Los Angeles contra os seus criadores, exploradores e projetistas, cujo alvo central é o magnata da engenharia genética Tyrrel (personagem de Joe Turkell), proprietário da corporação Tyrrel. E para enfrentá-los nada melhor do que alguém com extraordinária capacidade física, dotado de

Page 37

profundo conhecimento dos segredos dos replicantes, ostentando este perfil, na trama, o agente policial aposentado Deckard, interpretado por Harrison Ford. Ao que tudo indica, Deckard é um replicante alforriado, domesticado, cooptado para lidar com os perigos que a sua espécie oferece quando penetra espaços não autorizados pelos donos do negócio mais rentável no tempo da fabricação do além do homem não nietzscheano.

Quanto ao mundo laboral emergente, reitere-se, os tensos diálogos entre humanos e "os mais humanos que os humanos" (Nexus-6), os sons impactantes anunciadores de viagens para outras galáxias e as arrebatadoras imagens desta clássica obra de arte em torno da época "pós-moderna", tudo envolto nos múltiplos papéis da engenharia genética, revelam a submissão obreira aos experimentos de uma vida "pós-humana", onde prepondera a superespecialização, a fragmentação total da fábrica (trabalho em rede) e a descartabilidade da força de trabalho após o cumprimento de sua tarefa especial. As cenas mais marcantes, sob tal viés, encontram-se em dois decretos de morte, quais sejam, o fim da era fordista de produção concentrada na grande fábrica vertical e o agonizante desaparecimento do líder dos replicantes pela expiração do seu prazo de validade.

Para localizar o seu criador e explorador (Tyrrel), mas especialmente para prolongar o seu tempo de vida, Roy, o mais inteligente e belo dos replicantes, na companhia de outro colega, vai à fábrica totalmente horizontalizada responsável pela concepção exclusiva de olhos. Trata-se de uma subcontratada da Tyrrel Corporation dirigida pelo velho cientista chinês Hannibal Crew (personagem de James Hong), que se refere a Tyrrel como "patrão". Inquirido por Roy sobre longevidade, Hannibal, tremendo de medo, gaguejando, diz o seguinte: "Só faço olhos. Só Olhos. Só concepção genética. Tu Nexus? Concebi os teus olhos". Em estilo provocante, Roy responde-lhe então: "Se ao menos pudesse ver o que vi com os seus olhos". Na outra cena, após vencer a luta contra Deckard e preservar a vida do agente especializado em identificar e liquidar replicantes, Roy, nos últimos momentos de sua existência, agonizando porque o seu tempo chegou ao fim, descreve, para o adversário incrivelmente perdoado, o que fora sua curta e intensa vida: "Vi certas coisas que a sua gente não acreditaria. Naves ardendo ao Largo de Orion. Vi raios cintilando na escuridão junto ao Porto de Tannhäusci. Todos esses momentos vão se perder no tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer".

A arte cinematográfica de Blade Runner, sem nenhuma dúvida, nos apresenta a época da engenharia genética utilizada para construir uma força de trabalho diferenciada para tarefas do mesmo gênero, muito além da capacidade humana normal (replicantes), mas com reduzido prazo de validade, descartável, portanto, depois de cumprida a sua grandiosa missão. É também o tempo da radical repartição do processo produtivo (a existência da fábrica de olhos dos replicantes), da fluidez do tempo, da pressa, da precarização das condições de trabalho, do crescimento dos conglomerados econômicos (a fábrica Tyrrel como expressão do potencial da nova indústria e a Coca-Cola nos inúmeros painéis...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT