Direitos, Identidade E Povos Ciganos: Um Estudo Sobre As Fronteiras Dos Processos De Normatização Da Ciganidade No Brasil
Autor | Phillipe Cupertino Salloum e Silva, Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira |
Cargo | Universidade Estadual de Goiás (UEG), Anápolis, GO, Brasil e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Doutor em Antropologia |
Páginas | 159-200 |
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DIREITOS, IDENTIDADE E POVOS CIGANOS: UM
ESTUDO SOBRE AS FRONTEIRAS DOS PROCESSOS
DE NORMATIZAÇÃO DA CIGANIDADE NO BRASIL
RIGHTS, IDENTITY AND GYPSIES PEOPLE: A STUDY ON THE
BOUNDARIES OF THE NORMATIVE PROCESSES OF GYPSINESS IN
BRAZIL
Phillipe Cupertino Salloum e SilvaI
Luiz Eduardo de Vasconcellos FigueiraII
Resumo: Visa-se descrever e analisar, neste estudo, a
tramitação do projeto de lei n° 248/2015, que propõe
a criação do Estatuto do Cigano. A proposição deste
marco legal especíco perpassa pela discussão acerca
da identidade cigana, ou seja, da “ciganidade” , pois
esta condição, o “ser cigano”, nos últimos 15 anos, vem
possibilitando acionar políticas públicas (ações armativas
de acesso à universidade, produção de cartilhas para
atendimento especializado no âmbito escolar, na saúde
e nas políticas de renda mínima, editais de incentivos
cultuais, por exemplo), reivindicar Direitos Humanos
especícos, assim como ocupar espaços em conselhos,
órgãos públicos, participar de reuniões etc. Levanta-se a
seguinte questão, como problema de pesquisa: como os
diferentes entendimentos sobre “ciganidade” surgem e
inuenciam no processo de tramitação do projeto de lei nº
248/2015, que propõe a criação de um Estatuto do Cigano?
No percurso deste processo legislativo, diferentes formas
de fronteiras podem ser percebidas; margens porosas,
indenidas, que tentam normatizar a ciganidade; ao
mesmo tempo que este movimento de institucionalização
do “ser cigano”, no Congresso Nacional, também se dão
nas dobras, percorrem o formal e informal. Trata-se de
uma pesquisa de inspiração etnográca, que exigiu uma
observação participante, assim como uma “descrição
densa” dos processos investigados.
Palavras-chave: Identidade cigana. Povos e Comunidades
Tradicionais. Processo legislativo. Antropologia jurídica.
DOI: 10.20912/rdc.
v15i35.3280
Recebido em: 27.09.209
Aceito em: 25.10.2019
I Universidade Estadual de
Goiás (UEG), Anápolis,
GO, Brasil e Universidade
Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. E-mail:
phillipecupertinoss@
gmail.com
II Universidade Federal
do Rio de Janeiro
(UFRJ), Rio de Janeiro,
RJ, Brasil. Doutor em
Antropologia. E-mail:
luizeduardogueira@
gmail.com
160 Revista Direitos Culturais | Santo Ângelo | v. 15 | n. 35 | p. 159-200 | jan./abr. 2020.
DOI: http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v15i35.3280
Abstract: In this study, it aims to describe and analyze the
process of the bill 248/2015, which proposes the creation
of the Statute of the Gypsy. The proposition of this
specic legal landmark runs through the discussion about
the gypsy identity, in the other words, of the “gypsiness”,
because this condition, in the last 15 years, has enabled
to trigger public policies (afrmative actions of access to
the university, production of booklets for specialized care
in schools, health and minimum income policies, edicts
of cultural incentives, for example), to claim specic
rights, as well as to occupy spaces in councils, public
agencies, attend meetings, etc. As a research problem, it is
proposed to reect: how do the different understandings
about “gypsiness” arise and inuence the process of bill
248/2015, which proposes the creation of a Statute of the
Gypsy? In the course of this legislative process, different
forms of borders can be perceived; porous, indenite
margins that try to normalize the “gypsiness”; at the same
time as this movement of institutionalization of the being
gypsy, in the National Congress, also occur in the folds,
traverse the formal and informal. It is an ethnographic-
inspired research that required participant observation, as
well as a dense description of the processes investigated.
Keywords: Gypsy identity. Peoples and traditional
communities. Legislative process. Juridical anthropology.
Sumário: 1 Introdução. 2 “Nós somos desconhecidos
pela própria população”: a reivindicação de um marco
legal especíco de proteção aos ciganos. 3 “Além de tudo,
somos cidadãos brasileiros”: os ciganos como sujeitos de
direitos. 4 “Tem pessoas não ciganas que está usurpando o
direito dos ciganos”: as disputas em torno da normatização
da “ciganidade”. 5 Conclusões. Referências.
1 Introdução
No Brasil, diferentes minorias étnicas e sociais (quilombolas,
indígenas, pessoas com deciência, idosos) conquistaram,
expressamente, na Constituição de 1988 e nos demais instrumentos
normativos, o reconhecimento enquanto sujeito de direitos e do dever
do Estado em garantir suas proteções, assim como inseri-los nas
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Phillipe Cupertino Salloum e Silva | Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira
políticas públicas inclusivas. A título de exemplo, pode-se citar o artigo
215, parágrafo primeiro, que indica como dever do Estado proteger “as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e
das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”,
assim como o artigo 216, inciso I e II, que tutela enquanto patrimônio
histórico brasileiro “as formas de expressão” e “os modos de criar, fazer
e viver” dos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Na
atual conjuntura governamental, observa-se a existência de estruturas
institucionais, como secretarias de estado, órgãos públicos, autarquias,
fundações, conselhos, voltados para concretizar e aplicar políticas
armativas reivindicadas pelas minorias sociais e étnicas.
O novo pacto social, proposto pela atual Constituição, ao
atribuir enquanto função do Ministério Público “defender judicialmente
os direitos e interesses das populações indígenas” (artigo 129, inciso
V), contribuiu para a incorporação da Lei Complementar 75 de
1993, que estendeu às atribuições do Ministério Público Federal para
também incentivar e scalizar o Estado, assim como a sociedade,
na defesa dos interesses das minorias étnicas (art. 6, VII, “c”), em
busca da concretização dos direitos culturais. Nesse contexto, povos
historicamente subalternizados vêm alcançado maiores espaços de
diálogos e acesso às receitas públicas por meio das políticas públicas
direcionadas a um reparo histórico da exclusão, por exemplo, a
obrigatoriedade do ensino da cultura e história afro-brasileira, africanas
e indígenas nas escolas, assim como a política de cotas raciais nas
universidades e em concursos públicos. Todavia, algumas minorias
étnicas permanecem com pouca ou sem visibilidade, continuam com
insuciente participação nas discussões políticas e acadêmicas.
O presente artigo trata sobre uma dessas minorias: os “povos
ciganos”. Não a “cigana” ou o “cigano” músico, viajante, eterno morador
de tendas e de vestimentas coloridas. Bem longe destas representações
inseridas nos imaginários populares, a análise aqui desenvolvida volta-
se para os grupos ou pessoas que atuam na tramitação do Projeto de
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