Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976

AutorKarina Almeida do Amaral
Páginas210-231

Page 210

1 Introdução

Os direitos fundamentais são uma criação que não pode ser considerada antiga, ao contrário, se mostra "recente na história da humanidade" 123.

A professora Cristina Queiroz diz que a designação "direitos fundamentais" surgiu a partir da Constituição alemã de 1848. O fato de serem qualificados como "fundamentais" guardava a ideia de que haviam sido reconhecidos pelo Estado e não, criados por este. Os direitos eram, na verdade, tidos como anteriores ao Estado, não podendo tal ente dispor dos mesmos4.

Segundo o professor José de Melo alexandrino os direitos fundamentais acabam por caracterizarem-se como sendo a descrição do relacionamento entre os homens e o Estado. Através da delineação de tais relações consegue-se obter respostas sobre o que se deve considerar como sendo "ameaças fundamentais", além de "respostas a necessidades fundamentais do ser humano"5.

Tentando, também, definir os direitos fundamentais, José Carlos Vieira de Andrade ressalta que sua estrutura é complexa, possuindo um "conteúdo principal", onde estariam asseguradas "garantias específicas" e um "conteúdo instrumental", que abrangeria outras "faculdades ou deveres"6.

Por mais que possa haver algumas diferenças doutrinárias entre o que seria o significado de um direito fundamental, o fato é que não há dúvidas de que eles evidenciam uma posição, seja de que tipo for, dependendo da sua configuração, entre cidadãos de um lado e Estado do outro, pelo menos a princípio. E que sua estrutura, muitas vezes, se mostra complicada, sendo necessária uma observação cuidadosa para se extrair informações.

Voltando, agora, um pouco na história, José Carlos Vieira de Andrade, faz uma evolução dos direitos fundamentais durante os Estados Liberal e Social.

Começa por dizer que, na sua dimensão natural, os direitos se afiguram como irrestringíveis, constituindo um "núcleo restrito" imposto a todo e qualquer ordenamento jurídico7. Ao longo dos tempos, essa visão natural dos direitos fundamentais fora sofrendo modificações, mas o fato é que se recorre a esta sempre que Page 211 aparecem dificuldades a solucionar quando da aplicação de normas de direitos fundamentais. A partir daquele "núcleo restrito (decorrente da dignidade da pessoa humana)" seria possível retirar uma dimensão que auxiliasse na percepção do "conteúdo de sentido" dos preceitos dispostos na Constituição ou, ainda, em diplomas internacionais8.

Para o que nos interessa, tal dimensão natural de nada serviria caso não tivessem sido pensados, os direitos fundamentais, numa lógica estatal, de reconhecimento.

Seguindo este prisma, deve-se ressaltar, primeiramente, o fato de que, em função dos resultados das Revoluções Americana e Francesa, iniciou-se a consideração da primazia do indivíduo em relação ao Estado; sendo que a partir daí, se pretendeu realizar os direitos do primeiro9.

Durante e após a 2ª Guerra Mundial, prevaleceu a ideia de que seria necessário criar condições e mecanismos de defesa dos direitos, não somente na perspectiva dos Estados, mas que viabilizassem uma proteção internacional10.

No século XVIII, ressalta-se que os direitos fundamentais apareceram como triunfos advindos das revoluções liberais. Surgiram como meios dos indivíduos exercerem sua liberdade e autonomia face ao poder estatal, sendo que tal poder não deveria ser utilizado como forma de gerir a vida das pessoas. Porém, o exercício dos direitos fundamentais pressupunha certa ordem, dentro de uma comunidade organizada, no sentido do Estado garantir tal exercício, mesmo que para isso tivesse que restringir certos direitos dos indivíduos11.

Nesta fase, o direito de propriedade era tido como mais do que um direito fundamental12. Por intermédio deste, se poderia garantir a liberdade dos indivíduos13. Agora, para que fosse garantido um exercício efetivo da liberdade (por intermédio da propriedade), o indivíduo deveria ser esclarecido, sendo a informação e a publicidade consideradas importantes, neste aspecto. Para tanto, considerou-se, a classe de proprietários como possuidora do direito de votar e de ser votada14. Assim, o lema do liberalismo quanto aos direitos fundamentais era: "liberdade, segurança e propriedade"15. Page 212

O problema foi que as transformações sociais e econômicas exigiram mais do que o liberalismo pôde dar16. Apareceram "um conjunto de direitos políticos como direitos de participação na vida política"17. E tais direitos passaram a ser considerados indispensáveis à dignidade do cidadão18. No mesmo sentido, os direitos de defesa sofreram um alargamento e, quanto às minorias, as lutas contra a "discriminação e o arbítrio" trouxeram a imposição do princípio da igualdade, como "regulador de toda a matéria dos direitos fundamentais"19.

Neste contexto, surgia a democracia como fundamento e garantia dos direitos fundamentais e, também, da liberdade individual20. Isso significa que a destruição do liberalismo não foi algo construído politicamente; "foi a própria sociedade liberal que ruiu"21.

A ideia, do liberalismo, de que o indivíduo poderia exercer sua liberdade e autonomia, sem que o Estado se intrometesse ou, ainda, se preocupasse, não conseguiu ser mantida, porque é lógico que, da prática destas relações entre cidadãos e Estado, adviriam outras implicações que não tinham sido pensadas pelo Estado Liberal. E este ente nem teria como fazê-lo, uma vez que o Estado não poderia prever que as transformações sociais ditariam as regras da mudança do Estado Liberal para o Estado Social.

Após a ruína do liberalismo, o progresso advindo da industrialização fez com que os homens se deslocassem do campo para as cidades e seu ritmo de vida foi alterado, desenhando-lhes "os horizontes de um bem estar material"22. Dessa forma, o Estado passou a ser necessário na vida social e não mais como, simplesmente, um poder de polícia23. O Estado precisava intervir na vida das pessoas e na economia, garantindo aos indivíduos prestações sociais que pudessem se fazer necessárias, dentro de uma lógica distinta da imposta pelo liberalismo24.

Numa sociedade marcada por divisões e conflitos, o indivíduo iria precisar do Estado para poder exercer seus direitos de liberdade25. Além disso, "a interdependência e a solidariedade, o intervencionismo e a socialização vão alterar o sistema de direitos fundamentais"26. Esse novo pensamento passa da concepção do homem isolado para Page 213 buscar uma sociedade mais "racional, mais solidária e mais justa", com uma divisão mais adequada das riquezas produzidas27.

Agora se mostra reconhecida aos direitos fundamentais "uma função social"28. E, em contrapartida, os direitos não advêm, pura e simplesmente, da vontade do indivíduo, mas dependem "dos recursos sociais existentes"29 e são determinados por "opções políticas"30. Ou seja, além de serem limitados socialmente, os direitos fundamentais acabam por sofrer a "reserva de possibilidade social"31, correspondendo àquilo que o Estado pode realizar. Sobrou ao Estado a tarefa de garantir que tais direitos possam ser exercidos de forma concreta, sendo a ele imputada a obrigação de velar por tais condições32.

José Carlos Vieira de Andrade faz referência, ainda, quanto ao fato de que, durante a evolução dos direitos fundamentais, um aspecto que poderia ser considerado como representativo de todos os momentos pelos quais se passaram os direitos, é a proteção da dignidade humana como escudo às ameaças advindas do exercício de poderes estatais33.

O fato é que, a evolução dos direitos fundamentais, tendo por base os Estados Liberal e Social, nos trás informações distintas sobre as maneiras como eram vistos e encarados os direitos fundamentais, bem como a forma como o Estado deveria se portar diante de tais perspectivas. Importa-nos saber de que forma, a partir dessa incumbência do Estado intervir na configuração e concretização dos direitos, os direitos de liberdade e os direitos sociais podem ser vistos, a partir da realidade portuguesa atual.

Levando-se em consideração a Constituição de 1976, os direitos fundamentais são "situações jurídicas fundamentais das pessoas" reconhecidas nos artigos 24 a 79 da Constituição ou que sejam como tais admitidos na lei fundamental (por força dos artigos 16 e 17 da Constituição)34.

Os direitos, liberdades e garantias são, formalmente, aqueles previstos nos artigos 24 a 57 da Constituição (título II da parte I, capítulos I, II e III da parte 1). Os direitos econômicos, sociais e culturais são por sua vez, formalmente, os previstos nos artigos 58 a 79 da Constituição (título III, capítulos I, II e III da parte 1)35. Page 214

2 Estudo específico dos direitos, liberdades e garantias
2. 1 Primeiras reflexões

O professor José de Melo alexandrino ressalta que uma importante divisão dos direitos, liberdades e garantias é separá-los em direitos, liberdades e garantias pessoais (correspondente ao capítulo I do título II da parte I da Constituição - a esfera pessoal - artigos 24 ao 47), direitos, liberdades e garantias de participação política (capítulo II - a esfera política - artigos 48 ao 52) e direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (capítulo III - a esfera laboral - artigos 53 ao 57)36. Constitui tal divisão, ainda que se possa fazer "reparos", uma "base consistente e incontornável da estruturação constitucional relevante dos conteúdos materiais dos direitos, liberdades e garantias"37.

Tenta o autor demonstrar que os preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e garantias são muito diversos em seus enunciados e, em função disso, nas implicações que advém da análise dos mesmos.

Para tanto, ressalva que assim como o nº 1 do artigo 26 da Constituição38 enuncia várias...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT