Os direitos fundamentais nas relações de trabalho

AutorJoão Filipe Moreira Lacerda Sabino
CargoProcurador do Trabalho lotado na PTM de Marabá/PA. Pós-graduado em Direito Material e Processual pela PUC-SP. Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC-SP
Páginas194-213

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1. Introdução

O presente artigo pretende propiciar aos estudiosos do direito do trabalho um documento sistematizado com a aplicação dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, especialmente com o exame da teoria da eficácia horizontal nas relações de trabalho.

É sabido que a Constituição Federal de 1988 marca a restauração do regime democrático e confere peculiar importância aos direitos fundamentais.

Nota-se, desde seu art. 1º, que a Magna Carta buscou a proteção dos direitos humanos, estabelecendo como fundamento de toda a Constituição o valor da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Assim, o princípio da dignidade humana é o valor fonte da Constituição, do qual decorrem todos os direitos fundamentais.

É justamente para proteção da dignidade humana que há ampla previsão dos direitos fundamentais, tal como se percebe da análise do Título II — Direitos e Garantias Fundamentais. Tais direitos fundamentais são os direitos civis e políticos (relacionados à primeira geração de direitos fundamentais); os direitos sociais, econômicos e culturais (relacionados à segunda geração dos direitos fundamentais); e os

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direitos de solidariedade (relacionados à terceira geração dos direitos fundamentais).

A previsão constitucional dos direitos fundamentais é de suma importância, tendo esses direitos diversas funções, dentre as quais se pode destacar a função de proteção do indivíduo perante o Estado, a função de prestação social, a função de proteção do indivíduo perante terceiros e a função de não discriminação.

E por sua importância, além de prever expressamente a proteção e promoção total dos direitos fundamentais, a Constituição Federal estabeleceu rol aberto de fontes informadoras (art. 5º, § 2º, da Constituição Federal) e a aplicação imediata desses direitos (art. 5º, § 1º, da Constituição Federal).

Para se verificar a vinculação dos particulares (especialmente na relação empregado e empregador) a esses direitos fundamentais, inicialmente serão abordados aspectos teóricos do tema, para em seguida proceder-se a análise dos aspectos específicos da relação de trabalho ante ao direitos fundamentais.

2. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas

O estudo da eficácia dos direitos fundamentais relaciona-se diretamente com os sujeitos e a forma de vinculação a essa categoria de diretos.

2.1. Sujeitos na proteção dos direitos fundamentais

Historicamente, dentro do desenvolvimento dos direitos fundamentais, o sujeito vinculado à sua observância é o Poder Público. Nesse sentido é que nascem os direitos fundamentais nas Constituições, buscando proteger os indivíduos ante o Estado.

Não há contestação quanto ao dever do Estado de respeito a esses direitos. Dessa forma, há incidência dos direitos fundamentais nas relações entre Estado e particular, o que se chama de eficácia vertical dos direitos fundamentais.

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Eficácia vertical significa que os direitos fundamentais incidem nas relações do cidadão com o Poder Público, preservando-se a liberdade individual. Sob esse aspecto, apresentam-se os direitos fundamentais como direitos de defesa do indivíduo ante o Estado.

Em doutrina, exemplifica-se essa aplicação dos direitos fundamentais com a observância do princípio da isonomia nos concursos públicos1.

Além disso, há vinculação positiva do Poder Público quanto aos direitos fundamentais, ou seja, não só o Estado não pode invadir a liberdade individual, mas deve obrigatoriamente intervir para a realização de certos direitos.

Essa intervenção deve ser feita pelos três poderes, em especial pelo Poder Legislativo, visto que as Constituições normalmente constituem meras declarações de direitos, sendo que o legislador ordinário deve estabelecer diretrizes para o regime jurídico das normas constitucionais.

Entende-se, portanto, ser indiscutível a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares e Estado.

Portanto, os direitos fundamentais foram concebidos como direitos aplicáveis nas relações entre Estado e particulares. Contudo, tal noção mostrou-se insuficiente, haja vista que muitas vezes o violador dos direitos fundamentais não é o Estado e sim particulares, especialmente aqueles dotados de poder econômico ou social2.

Ao lado da vinculação estatal, percebe-se a necessidade da vinculação dos entes privados aos direitos fundamentais. Para a proteção dos direitos de defesa do cidadão é necessária a vinculação dos direitos fundamentais às relações privadas, o que se convencionou chamar de eficácia horizontal dos direitos fundamentais3.

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Não há como negar a vinculação das relações dos particulares aos direitos fundamentais. Discute-se, no entanto, se, ao contrário ao que sucede com o Estado, os particulares somente possuiriam vinculação negativa aos direitos fundamentais.

Júlio Ricardo de Paula Amaral sustenta que “a grande diferença existente entre os poderes públicos e os particulares, no que tange à forma de tratamento, é o fato de que, em relação a estes últimos, há apenas uma vinculação negativa aos direitos fundamentais”4.

Em sentido contrário se posiciona Luiz Guilherme Arcaro Conci5, para quem determinados direitos de prestação podem obrigar o particular, desde que exista previsão constitucional, infraconstitucional, ou acordo entre as partes.

Expõe como exemplo os incisos V, VI, VIII, XI, XIII, XV, e XVII, do art. 7º da Constituição Federal, que teriam vinculação direta. Como exemplo de prestação imposta pelo legislador ordinário cita o art. 398, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho, que dispõe que nos “estabelecimentos em que trabalhem pelo menos 30 (trinta) mulheres com mais de 16 (dezesseis) anos de idade terão local apropriado onde seja permitido às empregadas guardar sob vigilância e assistência os seus filhos no período da amamentação”.

Diante disso, observa-se que no Brasil, diferentemente de outros países, alguns direitos fundamentais disciplinados na Constituição já tiveram o objetivo de reger relações privadas, como ocorre com seu art. 7º.

Diante dos exemplos trazidos por Luiz Guilherme Arcaro Conci, reputa-se que não se pode negar a existência de direitos fundamentais de prestação dirigidos a particulares.

Vale ressaltar que a incidência dos direitos fundamentais nas relações particulares não será como ocorre em relação ao Estado, já que todos os indivíduos são titulares de direitos fundamentais6. Por

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isso, deve-se harmonizar eventual conflito entre direitos fundamentais, questão que será tratada mais adiante.

2.2. Forma de vinculação aos direitos fundamentais

Admitindo-se que os direitos fundamentais têm eficácia nas relações privadas, cumpre verificar a forma pela qual esses direitos incidem sobre os espaços da autonomia privada, especificamente quanto aos direitos de defesa.

São várias as teorias referentes à incidência dos direitos fundamentais aos entes privados. Destacam-se três teorias.

A primeira teoria nega a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares. Fundamenta-se na ideia de que os direitos fundamentais somente podem ser exigidos em face do Estado e que com a incidência haveria degradação da autonomia privada. Tal teoria é pouco defendida na atualidade.

A segunda teoria é a da aplicação indireta ou mediata dos direitos fundamentais nas relações individuais. Portanto, não nega essa incidência, mas afirma existirem limites em razão da autonomia privada e do princípio da liberdade.

Ainda, defende que os direitos fundamentais possuem demasiada abstração, devendo o legislador determinar seu âmbito de aplicação nas relações privadas. Interpretação em sentido contrário conferiria poder desmesurado ao judiciário.

Dessa forma, os direitos fundamentais seriam aplicados de maneira reflexa. Essa aplicação poderia ser proibitiva e voltada ao legislador, que não poderá editar leis que violem esses direitos, ou positiva, que impõe ao legislador que implemente os direitos fundamentais, ponderando quais devem incidir nas relações particulares7.

Destaque-se, também, a teoria da eficácia direta ou imediata, que propõe a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, ainda que sem qualquer intervenção do legislador, visto que

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estes são direitos subjetivos dos cidadãos oponíveis erga omnes, tanto em face do Estado como dos demais indivíduos8.

Então, a grande diferença entre as teorias da eficácia direta e indireta consiste na necessidade de mediação legislativa para que os direitos fundamentais produzam efeitos nas relações entre particulares9.

2.3. Conclusões parciais

A teoria que nega a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares deve ser completamente afastada, pois não se relaciona com o espírito da Constituição Federal de 1988.

A teoria da eficácia direta ou imediata será aplicada quando a norma constitucional for destinada aos particulares ou quando não houver disciplina legislativa sobre o tema. Havendo legislação que discipline a aplicação de um direito fundamental, esta deverá prevalecer desde que em consonância com o objetivo da norma constitucional.

Isto posto, há direitos fundamentais previstos na Constituição Federal que são diretamente dirigidos aos particulares, como ocorre com a maioria dos direitos trabalhistas previstos em seu art. 7º.

Além disso, há outros direitos fundamentais que podem ser aplicados às relações particulares, direta ou...

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