Os direitos fundamentais como limite à negociação coletiva

AutorAlvacir Alfredo Nicz/Ana Cristina Ravaglio Lavalle
CargoMestre e Doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo/Mestre em Direito Econômico e Social pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
Páginas43-56

Page 44

1. Considerações iniciais

A flexibilização da legislação trabalhista e dos direitos sociais insertos no art. 7º da Constituição Federal, a desestatização e desregulamentação da economia são consideradas, por muitos, essenciais no modelo de globalização vigente, notadamente no tocante aos países emergentes.

A filosofia do pleno emprego perdeu espaço para o “desemprego-estrutural”, para a flexibilização, para a adaptação. Tal situação é ainda agravada com o avanço da tecnologia que, consoante ponderações de Jeremy Rifkin1, está tornando cada vez mais desnecessário o trabalho humano para o processo de produção de bens e serviços.

Assim é que Ricardo Antunes2 considera a expansão do desemprego estrutural uma das mais brutais transformações no mundo do trabalho, sem precedentes na história, que atinge o mundo em escala global.

Nesse contexto, os trabalhadores padecem em face da incessante busca por lucros fáceis que fomenta o mercado sem fronteiras, vítimas de uma autêntica “banalização do mal”, situação que nos faz rememorar as previsões de Hannah Arendt 3, de 1963, no sentido de que “na economia automatizada de um futuro não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de um determinado nível”.

Logo, a proteção aos direitos humanos e fundamentais sobressai imperiosa no atual mundo globalizado, em que a busca desenfreada pelo acúmulo de riquezas considera a concretização dos direitos sociais um fardo a ser extirpado nas relações de trabalho.

Sob outro viés, a negociação coletiva encontra-se elencada dentre os direitos fundamentais do trabalhador, e o reconhecimento dos ajustes decorrentes encontra guarida no preceito insculpido no inciso XXVI do art. 7º da Constituição Federal.

Não se pode negar que a hipossuficiência do trabalhador no contrato de trabalho cede espaço no plano coletivo, quando devidamente representado pela entidade sindical, apta a representar os interesses de toda a categoria, e que goza de autonomia, na forma prevista pelos arts. 8º da Constituição Federal e 2º da Convenção Internacional n. 98, adotada em Genebra (1949) e ratificada pelo Brasil, tendo sido promulgada por meio do Decreto n. 33.196 de 29 de junho de 1953.

Considerando, ainda, o entendimento atualmente perfilhado pela doutrina, de que os direitos fundamentais podem sofrer restrições, mormente quando enfrentam outros valores constitucionais, e até outros direitos fundamentais, não sendo, portanto, a princípio, considerados absolutos, o presente estudo objetiva perquirir acerca das limitações impostas pelos direitos fundamentais à negociação coletiva.

2. Direitos fundamentais
2.1. Histórico dos direitos fundamentais

Os direitos fundamentais, como resultado de um processo histórico decorrente de expressivas alterações de interesses, de classes no poder, da tecnologia, nem sempre foram os mesmos, nas mais variadas épocas.

Assim, como nos ensina Norberto Bobbio4, direitos declarados absolutos no final do século XVIII, como o da propriedade, sofreram radicais limitações nas declarações contemporâneas, e direitos que sequer foram mencionados, a exemplo dos direitos sociais, são agora proclamados com acentuada ostentação.

Page 45

Expressiva corrente doutrinária costuma dividir o processo de desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais em dois momentos históricos: um anterior à Declaração de Direitos da Virgínia de 1776 e da Declaração Francesa de 1789, acentuadamente marcado pela relativa cegueira em relação aos direitos do homem, e outro posterior, caracterizado pela sua constitucionalização5.

No entanto, já no século II, com a vitória do estoicismo pelo cristianismo, surgiu a ideia de que os seres humanos são iguais em dignidade. A propósito, com propriedade leciona Luc Ferry6 que a teoria do cristianismo trouxe, em germe, o nascimento de um novo mundo de igual dignidade entre os homens, ideia incrível na época, e da qual nosso universo democrático será em parte herdeiro.

Com efeito. O universo grego, aristocrático por excelência, era fundamentado em uma hierarquia entre os homens, segundo a qual os melhores deveriam prevalecer em detrimento dos inferiores, ideia esta que, inclusive, legitimava a escravidão.

Canotilho7 salienta que, no entanto, até mesmo a antiguidade clássica não se quedou em uma completa cegueira com relação aos direitos fundamentais, pois a ideia de igual-dade, ainda que não tenha ultrapassado o plano filosófico, nem tampouco tenha sido convertida em medida natural da comunidade social, esteve presente no pensamento sofístico. Este, a partir da natureza biológica comum dos homens, aproxima-se da tese da igualdade natural e da ideia de humanidade.

Gilmar Ferreira Mendes et al8 salientam que o cristianismo marcou impulso relevante para a ideia de dignidade única entre os homens, já que o “ensinamento de que o homem é criado à imagem e semelhança de Deus e a ideia de que Deus assumiu a condição humana para redimi-la imprimem à natureza humana alto valor intrínseco”.

A doutrina cristã, contudo, começou a declinar com o renascimento, a partir do século XVII. O pensamento moderno, com o surgimento do humanismo, colocou o homem no lugar e na posição do cosmos da época do estoicismo, e da divindade defendida pelo cristianismo.

A propósito, percucientes revelam-se os ensinamentos de Mendes et al9, no sentido de que:

“Nos séculos XVII e XVIII, as teorias contratualistas vêm enfatizar a submissão da autoridade política à primazia que se atribui ao indivíduo sobre o Estado. A defesa de que certo número de direitos preexistem ao próprio Estado, por resultarem da natureza humana, desvenda característica crucial do Estado, que lhe empresa legitimação — o Estado serve aos cidadãos, é instituição concatenada para lhes garantir os direitos básicos.”

No mesmo sentido, assevera Ingo Wolfgang Sarlet10 que o pensamento kantiano constituiu o marco conclusivo desta fase da história dos direitos humanos. Esclarece, ainda, o autor11que, para Kant, o direito de liberdade, direito natural por excelência, abrange todos os direitos, sendo limitado apenas pela liberdade coexistente dos demais homens.

Foram esses pensamentos que serviram de fundamento à Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, e à Declaração dos Direitos do Homem, de 1789, que tiveram como característica comum a profunda inspiração jusnaturalista.

Page 46

Os direitos do homem, ali consagrados, eram direitos naturais, inalienáveis e sagrados, também considerados imprescritíveis, e incluíam, como nos ensina Bonavides, a liberdade, a proprie-dade, a segurança e a resistência à opressão12.

Ressalta Bobbio13 que os historiadores são unânimes ao asseverar que a Declaração dos Direitos do Homem representou momento decisivo na história do gênero humano, assinalando o fim do antigo regime. Esclarece, ainda, o mesmo autor14, que o núcleo doutrinário da declaração está contido nos três artigos iniciais, sendo que o primeiro concerne à natural condição dos indivíduos, que precede à formação da sociedade civil; o segundo, à finalidade da sociedade política, que vem depois do estado de natureza; e, por fim, o terceiro, concernente ao princípio de legitimidade do poder que incumbe à nação.

Assim, apenas quando invertida a tradicional relação entre o Estado e os indivíduos, reconhecendo-se que estes têm primeiramente direitos, e depois deveres perante o Estado, é que os direitos fundamentais assumem posição de destaque. Ainda, tornou-se assente que as obrigações do indivíduo em face do Estado têm função precípua de propiciar o atendimento, pelo Estado, das necessidades dos próprios cidadãos.

Com propriedade afirma Ingo Wolfgang Sarlet15, que as contribuições francesa e americana foram decisivas para o processo de constitucionalização dos direitos e liberdades fundamentais nas Constituições do século
XIX. A evolução no campo da positivação dos direitos fundamentais, culminou com a afirmação do Estado de Direito, em sua concepção liberal-burguesa, determinante, por sua vez, para a concepção clássica dos direitos fundamentais, caracterizando, assim, a primeira geração destes direitos.

Exsurgiu, assim, nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade o conteúdo precípuo dos direitos fundamentais. E, como ressalta Bonavides16, uma vez descoberta a fórmula da generalização de universalidade, os direitos fundamentais passaram a manifestar-se, na ordem institucional, em três gerações sucessivas, que evidenciam um processo cumulativo e qualitativo, cujo norte é a nova universalidade, material e concreta, em substituição à universalidade abstrata e metafísica dos direitos contidos no jusnaturalismo inerente ao século
XVIII.

2.2. Das diversas gerações de direitos fundamentais

A análise dos períodos que demarcam a evolução histórica dos direitos fundamentais os situa em gerações.

A primeira geração seria aquela surgida no final do século XVII, com as revoluções francesa e americana, abrangendo os direitos de liber-dade, que encontravam na limitação do poder estatal o seu fundamento. Assim, os direitos civis e políticos passaram, a partir de então, a compor a esfera normativa.

O titular destes direitos de primeira geração, oponíveis ao Estado, é o indivíduo. Estes direitos, denominados negativos, fazem exsurgir a separação entre o Estado e a sociedade.

Como nos ensina Uadi Lammêgo Bulos17, esta geração surgiu com o florescimento dos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT