Direitos constitucionais e a possibilidade de uma interpretacao construtiva distanciada.

AutorDPhil, Wil Waluchow
  1. Introducao

    Dentre as varias pessoas as quais muito devo academicamente, tres sao especialmente importantes. Primeiro, e principalmente, refiro-me ao meu orientador de doutorado, H.L.A. Hart, a quem ainda recorro em busca de inspiracao e novas ideias. Mas, logo atras dele, estao dois de seus mais famosos e influentes alunos: Joseph Raz e Ronald Dworkin, cujas ideias tambem ajudaram a moldar meus pensamentos a respeito de muitos temas juridicos. Neste artigo pretendo, novamente, apoiar-me em Raz e Dworkin, desta vez com o intuito de desenvolver uma justificacao do controle judicial de normas e direitos constitucionais (1). A visao que aqui apresento pode representar ou uma variacao da ideia formulada por Dworkin, ou pode ser, na realidade, aquela que ele realmente pretendia adotar (2). Com ela, proponho que, perseguindo o que Dworkin chama de "interpretacao construtiva" dos direitos constitucionais, os juizes nao precisam colocar o objeto de suas interpretacoes na sua melhor luz moral considerada a partir dos julgamentos morais de primeira ordem (3) dos proprios juizes. Em verdade, seguindo Raz, podemos dizer que os juizes nao so podem, como normalmente procuram fazer isto a partir da perspectiva da comunidade democratica e dos julgamentos morais de primeira ordem desta comunidade. Se isto e de fato possivel, entao temos a nossa disposicao uma promissora resposta a uma das mais significativas objecoes que tem sido levanta contra a leitura moral de Dworkin e a pratica de controle de constitucionalidade que ela pretende justificar--a de que ela e intrinsecamente antidemocratica. Na leitura moral de Dworkin, juizes (ou, ao menos, juizes norte-americanos) sao autorizados a derrubar uma escolha legislativa discutida por legisladores com legitimidade democratica sempre que acreditarem que o produto destas escolhas sao incompativeis com os direitos corretamente interpretados a partir da moralidade politica expressa na constituicao. Se assumirmos--como, sem duvida, devemos--que membros do Congresso ou do Parlamento invariavelmente acreditam que seu trabalho legislativo e compativel com a constituicao propriamente interpretada (4), podemos seguir para a seguinte conclusao: juizes, inevitavelmente, acabam por substituir os julgamentos e interpretacoes construtivas dos legisladores democraticamente legitimados pelos seus proprios julgamentos morais e interpretacoes construtivas dos direitos constitucionais. Portanto, o que quer que possa ser dito em favor de tal sistema de intervencao judicial, uma coisa parece clara: sua legitimidade democratica esta longe de ser obvia. Porem, se minha interpretacao Raziana da leitura moral de Dworkin esta correta, talvez tenhamos uma saida contra esta objecao democratica. E, alem disso, talvez tenhamos uma teoria plausivel sobre o controle de constitucionalidade e os atos de interpretacao que cotidianamente cercam sua implementacao. E isto que tentarei demonstrar.

  2. Leitura Moral da Constituicao

    A leitura moral da constituicao, desenvolvida por Dworkin, e um dos ramos de sua mais geral teoria da interpretacao, da qual interpretacao legal e constitucional sao especies. Na visao de Dworkin, o Direito de uma comunidade envolve mais do que regras e decisoes tomadas por uma autoridade de acordo com os procedimentos e as praticas aceitas. Ou seja, ele envolve muito mais do que (segundo Dworkin) e creditado pelo chamado modelo de regras do positivismo (5). O Direito envolve, obviamente, muito dessas regras e decisoes, que podem ser encontradas, paradigmaticamente, em leis, decisoes judiciais e nas constituicoes. Tudo isto, Dworkin chama de "direito posto" (6). Mas, de acordo com ele, este direito posto, de forma alguma, exaure todo o Direito. Mais importante para os nossos objetivos aqui, ele nao exaure, dentro do ambito da pratica constitucional, aquela parte do Direito que chamamos de Constituicao. Na visao de Dworkin, uma constituicao envolve os principios de moralidade politica que promovem a melhor explicacao e justificacao moral--i.e., a melhor interpretacao construtiva--da legislacao em que eles estao presentes, assim como as interpretacoes que sao dadas a estes principios ao longo da historia por interpretes autorizados, mais notadamente Cortes de Apelacao. Portanto, a interpretacao constitucional quase sempre invoca uma teoria interpretativa da moralidade politica. Alguem disposto a interpretar os limites impostos ao poder do Governo e a autoridade pela Constituicao deve desenvolver uma teoria interpretativa que seja capaz de identificar nao so o que vamos chamar de constituicao positiva, mas tambem as suas interpretacoes historicas e suas explicacoes e justificacoes moralmente melhores. (7)

    Desenvolver uma teoria de interpretacao constitucional, Dworkin bem sabe, e uma tarefa extremamente dificil, e pessoas de boa fe irao, inevitavel e razoavelmente, discordar sobre qual teoria e a melhor. Nao existe um teste mecanico e moralmente neutro que possa ser aplicado, o que ha sao interpretacoes concorrentes produzidas por pessoas cuja tarefa e interpretar. Isto nao significa, contudo, que uma tentativa de comparar teorias e impossivel ou sem sentido. Isto tambem nao significa que nao exista algo como uma unica teoria que personifique o verdadeiro significado da constituicao. Em outras palavras, a existencia de desacordo, controversia e incerteza acerca dos esforcos dos interpretes constitucionais nao tem por consequencia a inexistencia de uma resposta correta em casos constitucionais. Ela tambem nao gera a ausencia de uma unica teoria correta da constituicao que seja capaz de dizer qual e esta resposta e, consequentemente, o que a constituicao positiva, corretamente interpretada, de fato preve. A presenca destes fatores apenas implica que os interpretes devem, assim como devem em qualquer atividade interpretativa, inclusive artistica, cientifica e legal mais amplamente, exercitar a auto-critica ao produzirem suas teorias interpretativas. Dworkin vai ainda mais longe ao sugerir que, em um sistema legal maduro, quase sempre havera uma teoria constitucional melhor, e juizes (e legisladores) serao encarregados da tarefa de tentar ao maximo identificar e implementar as diretrizes desta teoria ao tomarem decisoes. (8)

    A leitura moral da constituicao apresentada por Dworkin tem tres importantes implicacoes para as nossas propostas neste artigo. Primeiramente, fatores como o sentido original ou a intencao original dos autores da constituicao positiva raramente sao, se e que alguma vez sao, relevantes para o significado da constituicao. No maximo, estes fatores historicos sao apenas o ponto de partida para os debates sobre moralidade politica que surgem em casos constitucionais.

    Em segundo lugar, casos constitucionais requerem a tomada de uma decisao inteiramente normativa, que, para o originalismo mais ortodoxo, so pode ser tomada por aqueles que tem o papel de fixar os limites constitucionais existentes dentro da constituicao positiva--i.e. seus autores originais. (9) O processo de interpretacao constitucional moral e politicamente neutro visualizado por originalistas ortodoxos nao e nem possivel nem atraente na teoria de Dworkin. Isto ocorre, pois a constituicao positiva nao e um produto acabado, produzido de uma forma fixa ate que uma emenda constitucional a altere ou uma revolucao ocorra. Pelo contrario, ela e um trabalho progressivo e continuado na medida em que nossas interpretacoes construtivas de suas normas e limites sao refinadas e (assim se espera) melhoradas com o passar do tempo. Ela e, em poucas palavras, uma entidade viva cujo conteudo e moldado por decisoes interpretativas de inumeros "autores". (10)

    A terceira implicacao relacionada a leitura moral da interpretacao constitucional proposta por Dworkin e a de que os juizes nao sao meros agentes cujos papeis de confianca e apenas levar a efeito as decisoes de moralidade politica ja tomadas pelos autores originais (ou derivados) da constituicao. Pelo contrario, eles sao cumplices destes autores em um projeto politico criativo e permanente que necessita de participantes que, tanto antes como agora, engajem-se em um tipo de tomada de decisao moral / politica de primeira ordem, que, em visoes mais originalistas ortodoxas, so tem lugar quando a constituicao positiva e primeiramente redigida (e/ou formalmente emendada). O significado da constituicao esta, na teoria de Dworkin, continuamente necessitando de interpretacao construtiva e e, como resultado, essencialmente contestavel ad infinitum. Se existe uma unica teoria ou interpretacao correta, esta e a que deve ser fixada naquele momento. Isto e, a interpretacao no momento T1 pode nao ser a interpretacao correta em um momento posterior, T2.

    Uma quarta implicacao da leitura moral de Dworkin e algo que ja foi mencionado acima, mas que merece uma analise mais aprofundada: o significado da constituicao e algo muito, muito dificil de determinar e e, inevitavelmente, objeto de disputas e controversias interminaveis. De fato, a identificacao confiavel do sentido constitucional, a qualquer tempo, exige o trabalho de um interprete construtivo de enorme capacidade de raciocinio moral, politico e legal. Esta empreitada talvez requeira, em outras palavras, o trabalho do que Dworkin chama de Hercules, o juiz ideal. Mas, e claro, Hercules e o produto da imaginacao de Dworkin, e, entao, o projeto de interpretar os contestaveis termos de uma constituicao e, na realidade, objeto de disputas e incertezas incontaveis. Esta tarefa requer que cada interprete faca seu melhor para alcancar o desempenho interpretativo de Hercules. Isto e, o interprete deve se empenhar para desenvolver e implementar a sua melhor, sem duvida imperfeita, interpretacao dos limites impostos ao Governo pela constituicao positiva e pelas interpretacoes que lhe foram dadas ao longo da historia. Estes limites nunca sao fixos e o interprete nunca podera saber com certeza absoluta o que eles realmente sao. Contudo, e...

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