O direito universal e o brasileiro no século XIX

AutorJosé Octávio de Arruda Mello
Páginas207-223
Revista Direito e Desenvolvimento, João Pessoa, v. 6, n. 11, p. 207-223, jan./jun. 2015
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O DIREITO UNIVERSAL E O BRASILEIRO NO SÉCULO XIX
José Octávio de Arruda Mello*
1 INTRODUÇÃO
Em face do primado das revoluções inglesa, americana e francesa dos séculos
anteriores, juridicamente sistematizadas no Código Civil de Napoleão de 1804, o século XIX
apresentou-se hegemonizado pela burguesia.
Esta rapidamente transferiu-se do plano comercial para o industrial e financeiro, com o
último significado, nas expressões de Lenine, “imperialismo, etapa superior do capitalismo”.
Tal expressou a passagem do capitalismo individualista e liberal da Revolução Francesa,
marcada pela Declaração dos Direitos do Homem, para os desdobramentos da Revolução
Industrial, com as grandes corporações em condições de envolver o(s) Estado(s).
Estes, então, lançaram-se a furiosa corrida armamentista pela posse de colônias, da
qual resultou a formação de blocos basicamente Inglaterra, França, Itália, Rússia e Estados
Unidos contra Alemanha, Áustria-Hungria e Turquia. Essa confrontação conduziria ao beco
sem saída da Primeira Guerra Mundial. Deflagrado em 1914, esse conflito significou, de
acordo com o raciocínio do Historiador inglês Eric Hobsbawm, o final do século XIX,
datando daí o século XX, ou seja A era dos extremos, até a desintegração do chamado
socialismo real, em fins da década de oitenta.
1.1 Direitos e garantias individuais nas Constituições No limiar do século XIX, a
burguesia da transição do mercantilismo para a indústria fazia-se ainda individualista e liberal.
Isso equivale a dizer que, jovem e senhora de si, essa classe valeu-se das baionetas de
Napoleão Bonaparte “espírito universal a cavalo”, para o filósofo alemão Hegel – a fim de
desmontar as estruturas do absolutismo consorciadas com as práticas corporativistas do
mercantilismo barroco.
Temos então, para Hobsbawm, A era das Revoluções (1789-1848), 14ª ed., 1977.
Do ponto de vista do Direito, tratava-se de assegurar a primazia dos cidadãos cujo
conjunto é o povo, detentor da soberania mediante os Direitos Individuais, que lhe são
inerentes.
* Historiador de ofício, com doutorado pela USP e integrante dos IHGB, IHGP, APL e Centro Internacional
Celso Furtado. Professor aposentado das UFPB e UEPB, titular de História do Direito do UNIPÊ. Autor de
História da Paraíba Lutas e Resistência (13ª ed., 2 013) e Perfis Parlamentares Samuel Duarte (Câmara
dos Deputados, 2014).
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Ou seja, aqueles direitos que, ainda hoje, representam as liberdades fundamentais das
modernas Constituições. No século XIX, elas proliferaram por toda parte, trazendo consigo os
princípios revolucionários liberais de liberdade, igualdade e fraternidade.
Tal significou que, em razão da igualdade de todos perante a lei, “nenhum cidadão
pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. A esta
incumbia estabelecer a liberdade, segurança individual e propriedade, com base nas liberdades
de pensamento e palavra, religião, crença filosófica e reunião. Direito de ir e vir.
Inviolabilidade de domicílio. Sigilo de correspondência. Liberdade de trabalho e qualificação
profissional. Direito de petição e independência do Poder Judiciário.
Tratava-se, claramente, de proteger o cidadão, anteposto ao Estado, contra o arbítrio
do poder (real).
Para que este último não prevalecesse seguiam-se as garantias individuais destinadas a
proteger o direito dos cidadãos. Tais o habeas-corpus, importado do Direito norte-americano
para garantia do direito de locomoção. Irretroatividade da lei em matéria fiscal e penal.
Inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos. Impossibilidade de prisão sem
culpa formada. Anterioridade da lei para execução das sentenças, subordinadas à autoridade
competente. Personalização da pena do delinquente. Abolição das penas de açoite, tortura,
decapitação, marca de ferro quente e todas as chamadas penas degradantes, assim como das
corporações de ofício, juízes, escrivães e mestres dessas.
Estas duas últimas proibições expressavam a quintessência do liberalismo, nos planos
penal e econômico. Assim, enquanto a supressão das sanções cruéis refletia as recomendações
do marquês de Beccaria (1738-1794), no livro Dos delitos e das penas (1964), a eliminação
das corporações de ofício tinha em vista remover os obstáculos do corporativismo mercantil
ao capitalismo de novo tipo que desabrochava.
Coroando esse processo, as Constituições estipulavam que os poderes constitucionais
não poderiam suspender a Constituição em matéria de direitos individuais, “salvo no caso de
rebelião ou invasão de inimigos”. A defesa da ordem abria-se a outra figura da lei, numa
época em que esta, de feição escrita, substituía o arbítrio real e pontificava no centro do
ordenamento jurídico e social. Essa figura é o Estado de Sítio. As raízes deste assentam no
ditador romano.

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